"Sol na janela"
Ela engravidou bem cedo. Com quase oito meses, engravidou e nasceram quatro. Enquanto ainda amamentava os primeiros tornou a engravidar e da segunda vez foram sete. Três semanas depois um dos sete morreu, talvez não tivesse leite suficiente, talvez não vingou por falta de destino. Alecrim teve um ano e meio de idade e dez filhos. Hoje mora com sua mais velha, apenas. Aos poucos viu seus filhotes sendo levados da casa; depois viu a casa com quintal e a rua ampla com pássaros que cantam sendo levada de si. Hoje mora num apartamento pequeno com telas pretas nas janelas. Mora ela, sua mais velha e o corpo de seu captor que começa a feder. Se bem que o cheiro dele nunca a agradou.
Vê em Fifi um pouco do espírito de curiosidade que há muito já não consegue energia para nutrir. Um dia bom para si era deixar-se deitada no sol digerindo a comida e ouvindo as patas rápidas de Fifi brincando com qualquer coisa que se mexesse. Não qualquer coisa, na verdade, Fifi tinha medo dele. Deve ter sido coisa da primeira infância de Fifi. Alecrim fez ninho na cama dele e ele olhava seus filhotes ainda mamando, ainda dormindo sem abrir os olhos, e quando abridos os olhos as patas começando a buscar rumo que ele cortava, pegando, abraçando e tornando-os de volta para a cama. Tonto suportou mais, os ruivos nem tanto. Mas Fifi era quem parecia ser a preferida.
Ainda na casa, corriam todos pelo quintal cheio de plantas e pequenos bichos e os pássaros ocasionais. Agora no apartamento não há nada do tipo. As plantas morreram sempre duas semanas depois de chegar na casa, até ele desistir de tentar. Os pequenos bichos agora só são de pano ou plástico. E a pilha de livros em cima da estante que ele ainda não organizou, elas escalam, vigiam, pulam e derrubam os livros, apontando o espaço e o tempo que ele desperdiça ao invés de arrumar.
O cheiro que sempre as desagradou era a constância. E quando ele bebia era pior, desarrumava tudo para ignorar arrumar no dia seguinte, até umas semanas depois arrumar tudo de uma vez, reclamando. Fifi e Alecrim observavam apáticas toda vez que acontecia. Até quando não aconteceu mais. Alecrim, dessa vez, passava inveja e dúvida da filha que não sentia o calor que a comia por dentro. A dor e o desconforto do corpo querendo natureza e ninguém por perto; só a filha, que não conseguiria ajudar, e ele, tampouco.
Eram dias extremamente quentes, na cidade. O calor dentro de Alecrim estava mais insuportável do que o de costume, se revirava no piso gelado do banheiro tentando roçar alguma coisa, mas nada ajudava. Fifi presumia irritabilidade com seus brinquedos de bolas de papel e entrava no seu caminho, pedindo comida e ignorando a água. Ele só dormia. Já aconteceu antes de ele dormir e Alecrim precisar chamá-lo e apontar para a comida que elas queriam. Chamou uma vez, chamou duas, chamou três dias sem parar. Também o calor não parava, os barulhos se repetiam, os barulhos paravam. Fifi berrava também de calor. Elas não conseguiam abrir as portas dos armários e no quinto dia que ele dormia, os lábios e o resto da pele passaram a parecer o único sustento possível.
Sobre o autor
João Chagas é formado em Letras-Inglês pela Ufes e escreve em blogs desde 2005. Possui três livros publicados, além de “Tem sol na ponta do deque, lançado em 2016, roteirizou a história em quadrinhos “Veneno Paraíso” (Secult – 2013) e foi vencedor do prêmio Ufes de Literatura com o romance “A paz dos vagabundos” (Edufes – 2014). Atualmente lançou o livro "Quiche", pela Editora Pedregulho, e faz parte do núcleo editorial da Revista Trino, publicação capixaba sobre literatura contemporânea.
"Quiche" está a venda aqui: http://bit.ly/2UDvmwR
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