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  • Foto do escritorEditora Pedregulho

Uma conversa íntima muito audível

Por Mara Coradello*


O livro Cidade Íntima de Lia de Mattos se assemelha a um longo e delicado suspiro. Nos poemas que compõem o conjunto de versos temos uma conversa, como o próprio título já nos diz, íntima. Mas a sensação de suspiro persiste, como se a ossatura dos poemas fosse algo sutil, ossatura sutil de estrutura de dente de leão. Eis uma figura que me tomou ao ler o livro, um dente de leão sutilmente soprado ao longo das páginas.


Nem por isso a autora se exime de uma observação contundente da sociedade, como vemos nos poemas Inanição (pág. 50), O homem limpo (pág.45), ou O que me invade (pág. 77). Não chega a ser uma autora de poemas políticos, mas está longe da alienação. Essa sutileza está mais ao redor de seu estilo, de suas escolhas, de seu falar de amor de modo arfante mas não em excesso, talvez como uma de suas influências falaria se hoje escrevesse: Florbela Espanca.


As outras referências de Lia de Mattos permanecem na leitura: Clarice Lispector, Hilda Hilst, Elizabeth Bishop e algo de Fernando Pessoa.


Já no primeiro poema temos a percepção de que a viagem será intensa, sim porque apesar de suave Lia nos traz uma intensidade sem par.


Como eu ia dizendo o primeiro poema, que é em minha opinião um dos melhores do livro, chama-se Apoeme-se, do tupi-guarani aquele que enxerga longe:


Um poema sem palavras/Desvestido de significados nublados/Sem ruídos/Um que olhe direto nos olhos/E adentro penetre.’

Lia não rima amor com dor, mas quase rima amor com uma flor despedaçada e a beira do caminho:


A flor atrás da pedra,/E a pedra na frente da flor,/A pedra a fazer as coisas próprias de flor,/E a flor, surpreendam-se ou não,/ Desconfio eu,/Amando sem medida a sua pedra.

Lia ama também sem medidas as suas pedras, e elas se repetem no livro, que não exatamente traz repetições, mas sim coerência, coadunação e projeto, não são poemas recolhidos ao acaso.


Mas esse sem medida do parágrafo anterior não quer dizer excessiva, pelo contrário, mesmo nos mais bravios poemas de amor há uma elegante contenção em Cidade Íntima, um represamento que nos serve para, opostamente ao aprisionamento da intensidade, mas sim para contemplá-la amiúde e com imensidão.


Mesmo quando dedica um escrito a sua impressora multifuncional (pág. 48).


É um livro para ser lido num golpe só, como o li, devido a sua dicção de urgência e ao tamanho pocket, mas ao mesmo tempo o livro fica em nós, se repetindo e pedindo novas incursões. É uma cidade íntima que exige mais visitas. É um ótimo e intimista livro de poemas, aguardemos ansiosos o segundo volume dessa autora perspicaz e promissora.



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* Mara Coradello é capixaba, de Campo Grande, Cariacica. Em 2003, lança o livro O Colecionador de Segundos, pela Editora 7 Letras, RJ. Em 2004, integra a antologia 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, organizada pelo Luiz Ruffato, Editora Record, RJ. Em março de 2006 começou a escrever crônicas em A Gazeta. Em 2009, lançou pela Editora da Universidade Federal do Espírito Santo o livro Armazém dos Afetos, coletânea dessas crônicas. Em 2010 ganhou o Edital Funcultura ES com o livro de contos Histórias de Amor Escolhidas ao Acaso, mesmo prêmio que ganhou seu romance Escaras e Decúbitos em 2011, e o livro de poemas A Delicada Alegria dos Dias Comuns, em 2015, e Post-its de Carne e Putrefação, em 2020. Participa de diversos projetos de difusão da leitura com grupos de jovens e adultos. Atuou entre 2014 e 2016 como Conselheira de Políticas Culturais do MINC – CNPC Livro, Leitura e Bibliotecas.

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