"EU, DILÚVIO"
Se fala sobre engordar na quarentena, mas penso em meu corpo, vivo, ganhando forma, tudo se esparramando delicadamente, dobra após dobra e cheia de mim. Sem soberba, me admiro do alto desses quilos. Eu ocupo espaço, um corpo que não se dobra e nem cabe em qualquer lugar, não sei onde quero caber e me sinto tão cretina de pensar desse jeito e é tão bom ser cretina, e dizer coisas com palavras que eu jamais falaria em voz alta, pois fariam pouco ou quase nenhum sentido. Onde estávamos? Sim, o corpo, transbordando rijo, negro, ton-sur-ton de cor nenhuma.
O que se faz com a mulher que não cabe? Essa é uma daquelas perguntas ridículas, pois todos sabemos o que fazem com as mulheres que não cabem. Rua, puta, coisa, desempregada, currada, morta, cabe a morte cabe. Cai como uma luva, o cadáver desejado não ocupa tanto espaço, cova rasa, indigente, saco plástico na cabeça, caixa, cemitério municipal, sem enterro, sem tempo e arrastaram Cláudia e mataram tantas.
Ainda assim eu fui crescendo nessa quarentena e me achando sublime, divina, enorme e grande. E dias bons, dias ruins, e medo de tudo, de todos, do ontem, mas meu corpo rijo, forte, grande se impondo por sobre o tempo e os outros, café o dia inteiro e dor de cabeça por tomar o café o dia todo. Círculo que compõe a eternidade, que caminha com as bruxas, essa forma tão temida do infinito é o que me anima como uma grande e poderosa mulher. Alguém me salva? Não, isso não é um pedido de ajuda, pois ninguém (nem mesmo você), ninguém salva mulheres negras que não se pareçam com a Kerry Washington, roliças, plenas, donas de um corpo que transborda e inclui, aconchega ondecabe colo, e braços e bebês confortavelmente entre nossas coxas fartas e cheias de beleza e do nosso sexo.
Salvamos a nós mesmas e erguemos trincheiras tão altas para que ninguém nos veja bem dentro de nós, ainda crianças, de pituquinhas, cabelo preso para trás, raiz crespa e pontas lisas sorrindo de arquinho na cabeça. Para nossas Mamães somos lindas pretas, lindas e pretas, crianças, e o mundo nos devora; por isso, como disse, construímos muros e cercas e barreiras para dentro deles ainda podermos ser só pretinhas de pituquinhas e trancinhas que olham com amor e ignorância para o mundo, e ainda assim pretinhas e pequeninas rodopiando e rodopiando por trás da cerca. E os dias passam, muitas mortes, muitos mortos, de todos os tipos, tipo você, tipo eu; como estereótipos de gráficas vamos tombando, e assistindo, e gargalhando de um jeito horrível, como hienas que só continuam rindo, e vamos juntos e distantes nessa toada, repente sem ritmo.
Mas aqui no meu corpo eu me aconchego, meu bebê se deita e se põe tão belo entre meu peito e meu coração, e os olhos dele são sem dizer nada. Ele sabe que eu ocupo espaço o bastante para protegê-lo e preencher os dias de tanta coisa, amor, raiva, cansaço e ao me ver ele sabe que pode sentir tudo, pois as coisas passam e ele ainda cabe no meu colo, tão aberto e suave para ninar e passar os dedos pelo seu encrespado cabelo. Eu nunca caibo nas horas, não sou exata para viver dentro de um dia, sempre sobra ou falta dia, e acho que no dia em que couber não sei, provavelmente a vida vai ser essa falta de propósito de que vejo as pessoas comentando por aí, mas não sei bem o que é.
Fazem mulheres quererem ser pequeninas para que a preocupação para caber ocupe toda a sua mente e toda a sua vida se reduza a uma ideia vã de que se você couber, encontrará uma imagem melhor e firme de si mesma, e nessa busca por caber, o que é lindo e transborda também fica pequenino, o grande não é bem-vindo.
E como esse vaso de cerâmica você se molda e aumenta e diminui em um balé delicado e forte. E é dançando que você encontra um lugar bem profundo onde nada te impede de ser, e descansar desse papel tão longo que encena todos os dias, é quando todo o seu corpo com dobras se curva para suspender o tempo e ouvir sua respiração com pausa, e ouvir os pensamentos que você tem e nunca dirá, pois assim permanecerão seus, íntimos e intocados.
Repito: o grande não é bem-vindo.
Eu me sento à mesa antes de saber se caibo, e sendo assim preciso me sentar, e esparramar meu corpo, sorrindo, gargalhando para produzir efeitos e circular como as bruxas para encher o mundo com minha presença, se esparramando igual caldinha de chocolate.
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Por Renata Beatriz Rodrigues da Costa
Renata Costa é licenciada em História e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo. Trabalha com povos tradicionais, mulheres, jongueiros e caxambuzeiros. Escreve e filma suas próprias resenhas sobre cinema e integra a Coletiva de Mães Feministas Revolução Materna.
A escrita é para Renata lugar para expulsar demônios, tratar de indignidades e abrir rotas como rios para ir a diferentes lugares. A culpa disso é toda de Dona Marilene, que lhe apresentou muito jovem o poder da palavra.
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