Santa do Morro, de Silvio Alencar
Ruud acordou com um cheiro forte de bílis e urina ao seu lado. O navio chacoalhava tanto que achou melhor levantar-se antes que algo escorresse até o encontrar. Puxou as correntes dos pulsos e sentou, encostando-se à parede. Olhou em volta procurando a fonte do cheiro na escuridão do porão. Havia pessoas espalhadas por todos os lados, todas acorrentadas como ele, mas ninguém parecia ser a fonte do odor. Então ouviu um velho próximo de si, vomitando. Praguejou em voz alta e tentou, sem sucesso, se afastar. Já era ruim demais estar a ferros dentro de um navio pirata, não precisava pegar a doença das tripas também.
− Me desculpe − disse o velho, fracamente, em português − Não me sinto bem, acho que estou com febre.
− Não falo português − respondeu Ruud, em holandês.
O velho voltou a cabeça, com esforço, para Ruud.
− Claro que não − disse o velho, em holandês, e depois deitou a cabeça, possivelmente no próprio vômito − Como poderia ser de outro lugar?
O biotipo de Ruud era inconfundível. Alto, cabeleira e barba ruivas e a pele branca como o leite. A única coisa que destoava do arquétipo tradicional viking era a musculatura, que não era lá essas coisas.
− Como você fala a minha língua? − perguntou o ruivo.
− Trabalhei muitos anos para a Companhia das Índias Orientais. Traduzia documentos, participava de reuniões como intérprete e fazia a contabilidade. Aprendi algumas coisas. O que não aprendi foi ficar de boca fechada.
O velho deu uma risada baixa entre algumas tosses e depois ficou em silêncio. Ruud achou que ele havia desmaiado ou morrido. Estava enganado.
− De onde você é? − o velho havia se virado e olhava para o holandês. A barba branca estava suja e pegajosa.
− O que isso lhe interessa, velho?
− Sou Martinho, padre Martinho.
− Um padre que trabalhava para a Companhia das Índias? − riu Ruud.
− Nunca fui um padre muito bom. Era isso, ou morrer de fome. Fui o sétimo filho de meus pais. Não havia comida ou dinheiro para todos. Minhas irmãs foram dadas em casamento e meus irmãos vendidos para companhias militares. Eu tive sorte, Cristo me acolheu. Até eu virar as costas para ele e conseguir emprego na Companhia das Índias. Precisavam de alguém de letras para controlar o estoque. Depois fui realocado em outras funções. E quanto a você?
− O que quer saber?
− Qualquer coisa. Conversar me faz esquecer o meu mal. Você é calvinista?
− Pareço calvinista?
− É holandês, não é? Seria um bom chute.
− Não me importo muito com isso. Tenho minha fé, não preciso de igreja para pagar dízimo.
− Uma boa política. Qual é o seu nome?
− Ruud.
− Por que está aqui, Ruud? Foi sequestrado de seu navio?
− É complicado.
− Não quer falar?
− Você sempre fala tanto com quem não conhece?
− Como disse, não consigo ficar de boca fechada.
− Calem a boca! − gritou um dos prisioneiros e o assunto morreu.
Ruud conseguiu voltar a dormir com muito custo. Um pouco antes do amanhecer, sentiu algo puxar o seu pé. Era o velho novamente.
− Você é bom em guardar segredos? − perguntou ele, próximo ao rosto de Ruud.
− O que é isso? − Ruud tentou afastar o corpo, mas o velho estava agarrado a ele e espetava sua barriga com um pedaço de osso afiado.
Então Martinho empurrou um pequeno embrulho para dentro da boca de Ruud.
− Não grite. Engula, vamos, ou eu te furo o bucho.
Com dificuldade, Ruud engoliu o papelote.
− Bom garoto, disse o velho, com um sorriso desdentado. Isso estava no meu bucho, agora está no seu. Custou muito para tirar de dentro de mim. Agora, preste atenção, somente eu posso traduzir o que tem aí, não tente me passar para trás. Sem mim não vai adiantar de nada. Entendeu? Se me ajudar a fugir, farei de você um homem rico.
− Fugir? Por que fugiria? Logo estaremos no Novo Mundo e estará livre para fazer o que bem entender.
− Não eu, jovem rapaz. Eles querem o que sei e não me deixarão ir tão facilmente. Não devia ter bebido tanto no Mistel ou falado tanto. Enfim, preciso escapar do capitão, você me ajuda?
− Ficou louco, velho. Ninguém foge do pirata Cavendish .
− Homem de pouca fé. Meu Deus me mandou em uma missão santa no Novo Mundo, Ele vai mandar ajuda. É só esperar e verá.
− Se Ele vai tanto lhe ajudar, por que não deixou essa porcaria na sua barriga?
− Nestes tempos difíceis de 1620, meu filho, até os milagres precisam de ajuda.
Um pouco depois do desjejum de mingau encaroçado o padre foi levado por dois homens ao andar superior.
Depois de dois meses de viagem, Acácia pôde subir ao convés com seu pai para poder sentir o ar fresco e salino do Novo Mundo e ouvir o som de pássaros e o que o capitão tinha a dizer.
− Chegamos − gritou ele, para se fazer ouvir por todos. Depois daquelas árvores e praia está a terra de vocês como foi prometido pela Coroa. Há mais para saber. Algumas orientações. Mas vou deixar o alcaide Borges tomar a palavra.
O pai de Acácia soltou o braço da filha e se adiantou, deixando-a sozinha encostada à amurada.
− Meu nome é Pedro Henrique Borges Villas Boas. Fui o responsável pela oportunidade que tiveram em seu respectivo país de poderem ter uma vida nova no Novo Mundo. Cada um de vocês, cada um, sabe o que fez para estar a ferros em seu antigo país. Não perguntei e nem quero saber o que fizeram, isso ficou para trás. Daqui para a frente é vida nova. Sabemos que não será fácil. Todo mundo ouviu histórias e receio que boa parte seja verdadeira, apesar dos reinóis negarem isso. Sim, é verdade, os mortos caminham entre os vivos aqui.
Silêncio. Como Acácia, todos conheciam as histórias, não tinham ilusões sobre o que os aguardava na Terra de Santa Cruz. No entanto, ouvir claramente o que todos negavam tão veementemente era como ouvir a sua condenação pela segunda vez depois de uma apelação.
− Ninguém sabe o motivo para eles saírem dos túmulos, mas sabemos que eles podem voltar para lá. Basta uma alma temente e uma boa espada. Vocês sairão em grupos; Se tiverem família, melhor. Se não, que se arranjem com a divisão do que conquistarem. Pagarão impostos a Portugal, mas o que pegarem será de vocês. Esses são os termos do rei.
− Alcaide, e quanto aos mortos? Receberemos algo por limpar o Novo Mundo dessas aberrações?
Acácia nunca tinha ouvido a voz daquele velho. Era grave, mas melodiosa, como se estivesse acostumada a ser usada. Havia um leve sotaque latino e de liturgias nela. Um padre, talvez?
− Sim − respondeu Borges. O rei pagará vinte coroas pelo cento de cabeças entregues.
As pessoas sussurraram, impressionadas.
− E quanto por todas elas? − voltou a perguntar o ancião.
O pai de Acácia não respondeu por um tempo, avaliando a seriedade daquele homem.
− Creio que não haverá ouro suficiente que pague tal serviço, senhor...
− Martinho, padre Martinho. Disseram-me que o rei tem bastante criatividade.
− E como faria isso, padre? Como limparia um continente inteiro dos mortos que andam? Coisa que ninguém até hoje, depois de tantas tentativas, conseguiu.
− Deus falou comigo em sonhos e me explicou como fazê-lo − o eixo da voz de Martinho mudou, estava falando às pessoas ao redor. − Vou precisar de homens para concluir o meu trabalho. Pagarei bem a quem vier comigo. Além, é claro, de parte da paga da coroa.
− Por que não nos diz como fará isso, sendo o único ainda a usar correntes? − perguntou uma mulher.
− E perder a vantagem que Deus me deu? Dispenso. Quanto a isto, apenas um acordo temporário entre mim e o capitão. Quem vem comigo? Quem quer ganhar ouro pro resto da vida e ainda ficar em boa conta com o Todo-Poderoso?
− Alguns destes homens possuem contrato comigo − cortou o pai de Acácia. − Quem mais quiser ir com o senhor, está livre.
− E quanto ao senhor, alcaide? − Acácia podia sentir o sorriso na voz de Martinho. Imaginava o padre gorducho repousando a bota em alguma caixa e cruzando o braço sobre o joelho, sorrindo maliciosamente, como se colocasse mel em suas palavras e esperasse que as moscas caíssem nelas. − Por que não vem conosco? O que há de tão importante a fazer para se recusar a ir a uma santa luta de Deus contra o mal?
− Tenho responsabilidades.
− Entendo − a voz de Martinho vinha na direção de Acácia. Seu rosto esquentou e ela tentou desaparecer, abaixando a cabeça, mas não tinha como saber quem ainda a encarava. Deu meia-volta e procurou a entrada das cabines. Sentou embaixo das escadas, longe da discussão e acalmando a respiração. Aquilo tinha sido um erro. Talvez seu pai não soubesse disso, mas Acácia tinha total certeza. Vender tudo o que tinham em prol de uma “oportunidade” como aquela era jogar-se na cova dos leões e esperar que eles viessem jogar cartas com você. Não, aquele era um pensamento inadequado. Herético. Daniel não tinha feito as bestas se curvarem com orações? Eles também iriam. Deus iria dar-lhes o que precisavam naquelas terras, com ou sem mortos.
− O que conseguiu com o velho? − ouviu Acácia o capitão dizer, em inglês, subindo pela escada acima dela.
− Nada, senhor − respondeu baixo um homem no topo da escada. − Revistamos o maldito do cabelo ao cu. Demos azeite para o desgraçado beber, mas ele não tinha nada no bucho.
− E o que ele falou?
− Ele é doido, senhor. Disse que veio para curar os enfermos e acabar com a praga dos mortos, que Deus o havia enviado para catequizar os infiéis. Mas concordou em dividir o que conseguir de rentável conosco.
− Não posso me dar ao luxo de acreditar nisso. Leve mais dois com você. Acompanhe-o por terra.
− Não seria melhor arrancar a informação antes?
− Ele não vai falar. Dá muito valor ao que tem. Fizemos um acordo em dividir o butim, e é o que vamos demonstrar fazer... até que tenhamos uma oportunidade. Enquanto isso, vou preparar meu plano reserva.
− Capitão...
− Algo o preocupa, marujo?
− Não, senhor. É que...
− Ótimo. Corra, ou vai perder seu barco.
Ruud não estava habituado àquele calor e ao sol impiedoso, mas o ar fora do porão compensava tudo. Estar preso durante tanto tempo cria novos padrões de contentamento. Ajudou a retirar as provisões dos barcos e a levar para a areia da praia. Recebeu seu quinhão de comida e água numa mochila e foi ouvir o que os portugueses tinham a dizer. A língua deles era uma desgraça, mas mentiu para o padre Martinho, pois entendia bem o que diziam, só não era muito fluente. Pelo que pôde entender, havia dois grupos se formando. Um que queria seguir um cavalheiro de suíças brancas e outro que se formava em volta de Martinho e os homens do capitão. O cavalheiro distinto se chamava Borges e queria terras, já Martinho queria uma Guerra Santa. O grupo de Borges se avolumava à medida que as suas caixas eram abertas e de lá eram retirados os surpreendentes mosquetes, a maravilha da guerra moderna. Matar um homem sem precisar estar corpo a corpo com ele. “Uma arma de covardes”, diriam os antepassados de Ruud, que desprezavam com todas as forças o maldito arco inglês. Os portugueses não pareciam possuir reservas quanto a isso. No fim, Martinho havia arregimentado com sua lábia seis almas penitentes para sua Cruzada. Ruud não queria estar entre eles, já havia presenciado coisas ruins demais da religião para se interessar por isso no Novo Mundo. Não foi o que lhe disseram? “Terra nova, vida nova”?
Os olhos do padre não desgrudavam dele e Ruud cofiava sua barba rubra falha, imaginando uma forma de escapar, quando uma moça tropeçou em seus pés.
− Perdoe-me.
− Tudo bem − respondeu ele em holandês, e depois se corrigiu, dizendo a mesma coisa em português.
− O senhor é holandês! Está bem longe da casa, senhor.
− A senhorita também está − sorriu ele antes de perceber que os olhos da moça não estavam corretos. O tom azulado não era normal, era leitoso e turvo, quase brancos. Um rosto tão bonito com duas esferas mortas no centro. − Desculpe.
− Pelo quê? Eu que esbarrei no senhor. Sou meio atrapalhada em lugares que nunca estive. Sou Acácia.
− Meu nome é Ruud, senhorita.
− O senhor pretende sair à caça dos mortos? Ou vai ficar com o meu pai?
− Borges é seu pai?
A moça se encolheu. Ruud percebeu, tarde demais, como sua frase deve ter ido carregada de surpresa e asco pelo homem que arrasta uma filha com limitações a um mundo perverso como aquele.
− Meu pai não é como pensam. É um bom homem, temente a Deus e confiante em Sua justiça.
− Não duvido da crença dele, senhorita, mas também não vejo o Papa viajando para cá.
− Como ousa?
− Algum problema, Acácia? − o alcaide havia se aproximado com outros dois homens armados de mosquetes.
− Está tudo bem, pai.
− Muito bem, então vamos. Hora de partir − disse ele, medindo Ruud com os olhos. − O senhor virá conosco?
Aquela era uma opção, não era?
− Talvez.
− E o que sabe fazer de útil, senhor...
− Ruud. Não sou bom guerreiro, senhor, mas sei manejar uma arma e tenho formação, já fui boticário e barbeiro-cirurgião.
− Foi? E qual foi a sua última ocupação?
− Prisioneiro.
− Estou curioso pelo motivo.
− O senhor disse que isso não importava mais nesta terra.
− E não importa. Deus nos dá segundas chances. Será bem-vindo em minha propriedade, se quiser. Quem sabe eu o deixe fazer minha barba... um dia.
Borges se afastou tomando o caminho para o Norte, seguido pela grande maioria do grupo. Martinho e Ruud cruzaram olhares. Aquele era o momento de se decidir. Podia caminhar com o alcaide e, quem sabe, encontrar um lugar para ficar. Havia mosquetes suficientes para sonhar com alguma segurança naquele lugar. Mas, por outro lado, o que conseguiria com isso? Raízes. Algumas pessoas anseiam por isso, ter esposa, filhos, uma casa e um ganha-pão. Criar um vínculo. Tudo o que Ruud não poderia ter. Porque raízes significavam ficar parado. Ruud olhou para o céu, imaginando o que a noite lhes reservava.
Quando a última pessoa do grupo de Borges deixou a praia, Martinho se aproximou de Ruud.
− É agora que você corta o meu bucho e pega o seu papelote de volta, velho − disse Ruud, em holandês.
− Não seja tolo, já fui um homem de Deus. Não faço essas atrocidades − respondeu ele, também em holandês.
− Quase me furou com um osso.
− Apenas um reforço dramático. Escute, precisamos ficar juntos e nos livrar dos homens do capitão. Depois esperamos dois ou três dias andando na mata e, então, você remexe na sua merda e pega o embrulho para mim. Ou você o vomita amanhã, assim que escaparmos. Você decide.
− Por que não posso simplesmente fazer isso agora e você me deixa seguir meu caminho?
− Porque prometi fazê-lo um homem rico. Além disso, há muitos olhos sobre nós ainda. Iria levantar suspeitas. Deixemos que entendam esta nossa conversa como uma arregimentação, hein, que tal? Vamos, sorria, acabamos de chegar a um acordo e você está feliz com o combinado. Vamos caçar mortos juntos!
— O que tem nesse papel?
— O que mais seria? Um mapa do tesouro, óbvio.
A mata tinha um odor diferente de tudo que Acácia já sentira na vida. Cheiro de verde. Ela nunca havia entendido esse conceito, mesmo quando caminhava com sua dama de companhia nos jardins de casa. Como seria esse verde? Agora entendia. Era pungente, intoxicante, almiscarado e exuberante. Durante o dia era abafado como a respiração de um animal; ao entardecer era um frescor leve e sereno, com gosto de hortelã mastigada. Pena que vinha acompanhado da ardência dos mosquitos, uma parte desagradável de se estar em um mundo totalmente novo, assim como tropeçar a cada passo por causa de uma pedra ou de um galho. Desde que sua dama de companhia falecera na viagem, era o pai quem a acompanhava e tentava descrever o redor para ela.
− A trilha é magnífica, minha filha. Serpenteia a mata beirando as pedras da orla. Daqui podemos ver a praia com sua areia branca e compacta. Ao longe, há um fio de fumaça no céu, deve ser a vila. Não dá para saber ao certo, mas se for, depois de lá é mais meio dia de caminhada até nossa propriedade, ao pé do morro da Santa.
− Como é lá, papai?
− Bem, pela descrição do antigo Donatário, é um lugar magnífico. Tem um rio que corta a propriedade, pomares e uma criação pequena de animais. Algumas casas. Uma senhorial e outras da criadagem. É claro que teremos de avaliar as condições atuais, mas tenho fé que nada tenha se perdido.
− O navio irá nos esperar, não vai? Caso tenhamos problemas?
− Acácia...
− Pai, não precisamos fazer isso, podemos simplesmente ir embora.
− Não vamos discutir sobre isso novamente. Lembre-se do nosso propósito, tenha fé.
− Sim, papai.
− Uma semana, o capitão esperará por uma semana, mas espero não precisar de seus serviços.
Chegaram à fonte da fumaça no fim do dia. Acácia sentiu a diferença antes mesmo de entrar lá. Não havia mais cheiro de verde, nem som de pássaros ou de qualquer outro animal. Havia lamúria e algo pegajoso e férreo no ar. Uma mistura pavorosa de excremento, fumaça e sangue.
− Meu Deus!
− Por favor, diga o que vê, papai − implorou ela, mas o pai havia se dobrado para vomitar. Por alguns instantes ela ficou sem o braço dele e foi como se afundasse no negrume de um lago profundo no meio do Inferno. Ela podia ouvir pessoas tossindo, chorando e pedindo ajuda não muito distante dela, e o som do que parecia ser sacos de batatas batendo em pilhas de madeiras e de chamas se removendo. Mas Acácia sabia que não eram batatas. O ar soprou morno e grudento de lá, com um cheiro horripilante de carne assada.
− Aqui, filha, coloque isto no nariz. Ela aceitou o lenço, mas não o usou. Não queria aumentar sua cegueira. Ouviu passos. Alguns homens se aproximavam.
− Boa tarde. Sou o alcaide Borges − cumprimentou o pai. − O que aconteceu aqui?
− Os mortos − respondeu um dos homens sem emoção. Tinha o hálito podre e cheirava a suor. − Um pequeno grupo deles.
− Qual o seu nome, homem?
− Antônio Amparo, senhor. Acácia podia ouvir outras pessoas se aproximando.
− O que estão fazendo com aqueles corpos, Jesus Cristo?
− Precisamos queimá-los, senhor, ou eles se levantam.
Acácia abraçou o braço do pai, apavorada.
− Mas sem um enterro cristão? Onde estão o padre e o prefeito daqui?
− Na fogueira. Eu sou o responsável agora. O senhor veio nos resgatar? Tem um navio para nos tirar dessa terra amaldiçoada?
Acácia pôde sentir o coração do pai acelerar.
− Na verdade, vim para tomar posse de minhas terras.
− Acho que o senhor não entendeu a gravidade da situação, alcaide − disse Antônio Amparo. − Há mortos que andam aqui.
− Não sou parvo, rapaz, sei perfeitamente o que está acontecendo, mas tenho plena confiança em meu bom Deus e nos homens que me seguem. Não seremos vencidos pela força do demônio, e convido todos vocês a ficar conosco em nossa propriedade. Temos armas e eu trouxe o livro sagrado e relíquias santas que nos protegerão, uma das flechas de São Sebastião e um dos pregos da cruz de Pedro. Se me acompanharem até a minha propriedade ao pé do morro da Santa, terão um lugar seguro para vocês.
Houve um silêncio prolongado, quebrado apenas pelo crepitar das chamas.
− O morro da Santa é naquela direção − voltou a dizer Antônio Amparo e depois se afastou, assim como todos os outros aldeões.
Ruud empurrou dois dedos goela abaixo e o jorro subiu quase que instantaneamente. O segundo não precisou de estímulos. Depois revirou os restos de comida com um galho e pegou o pequeno pacote. Na escuridão do porão do navio havia imaginado que fosse um pedaço de papel dobrado, mas via que era um pequeno embrulho de couro. Limpou-o com uma folha larga. Havia letras estranhas nele, pareciam mais desenhos do que propriamente uma escrita. Guardou-o no bolso e então voltou ao acampamento.
Sentou-se ao lado de Martinho, que olhava para o céu noturno, com sua lua crescente e uma miríade de estrelas. Os demais preparavam sua refeição em uma fogueira. Os homens do capitão o vigiavam. Eram três. Batista, o imediato, olhos negros e inteligentes, com uma barba fechada escura, ornada com anéis vermelhos nas pontas das duas tranças do queixo; e Pôncio e Espirínio, duas bestas largas, violentas e barulhentas.
− Pegou? − perguntou, em holandês, o velho, sem retirar os olhos do céu.
− Sim.
− Excelente − disse, sem demonstrar interesse. − Quando estive a serviço da Companhia, conheci um homem encantador e vigoroso nas Ilhas Maurício, um corsário holandês chamado Marco van Nierlinders, mas todo mundo o chamava de Barbarosca. Ele veio até estas terras há alguns anos com um enorme carregamento roubado da Companhia. Queria enterrá-lo ou só dar um tempo até se esquecerem dele, mas acabou sendo surpreendido pelos mortos. Ninguém acreditou durante o seu julgamento, mas ele jurava de pés juntos que eles haviam comido toda a sua tripulação. O que era uma grande besteira de se dizer. Como ele conseguiria navegar sozinho? Como pudera escapar? Por isso, foi enforcado. Mas, toda mentira tem um fundo de verdade. Ele disse que a Santa da Penha o salvou. Disse que ela desceu dos céus e que afastou os demônios, e que os seus anjos conduziram seu barco em segurança até as Ilhas Maurício.
− Que parte você acha que é verdade?
− A da santa, é claro.
− Ou a do ouro?
− A história muito bem pode ser polvilhada de verdades, ora. Acontece que há a história de uma estátua de Nossa Senhora da Penha nessas terras. Dizem que ela desaparece e reaparece em lugares diferentes de tempos em tempos e que cura os enfermos.
— Você acha que tem a ver?
— Tenho certeza. Barbarosca pediu para se confessar antes de ser enforcado. Então ouvi seus pecados e o que a santa disse para ele depois de guardar a imagem junto do ouro em uma gruta. Ele me contou em detalhes como os mortos que andam poderiam ser destruídos, e como havia tatuado as instruções em sua coxa esquerda em ídiche.
− Meu Deus.
− O quê? Há holandeses judeus também. Mas não se preocupe, ele se converteu no fim, não é?
− A carne dele! Deus... carne humana!
− Ah, sim. Isso. O que achou do sabor? Tive que desenterrar o corpo para poder tirar a tatuagem.
− Merda! − cuspiu Ruud.
− Tão ruim assim? − divertiu-se Martinho.
− E como destruímos essas coisas?
− Acha mesmo que vou te contar? É segredo de confissão! − riu o velho. − O trato é simples, Ruud. Você me ajuda a terminar o que a santa pediu a Barbarosca e você fica com o ouro dele. Não tenho interesses monetários.
− Então por que não entrega aos homens de Cavendish?
− Porque me ajudariam em minha Guerra Santa assim que tivessem o ouro? Eles me matariam e depois venderiam a imagem da santa.
− Posso me juntar à conversa? − perguntou, em inglês, Batista, sentando-se. − Estou curioso pelo motivo de ficarmos parados o dia todo neste lugar, padre. Pode me explicar?
− Paciência é a resposta para tudo − respondeu Martinho. − Estamos aqui por dois motivos, por duas coisas que Barbarosca me contou antes de morrer. A primeira é sobre as estrelas, elas indicam o caminho para onde devemos ir. Só posso me orientar à noite, pelo menos na parte inicial do trajeto.
− E o segundo motivo? − quis saber Batista um pouco antes de alguém gritar perto da fogueira. Martinho agarrou o braço de Ruud e os dois correram na direção oposta. Batista não os viu escapar, ficou petrificado olhando dois indígenas de pele fendida e pálida morderem o pescoço de um dos portugueses que preparava batatas e cebolas ao fogo. Em poucos instantes, a clareira inteira ficou tomada por criaturas dos mais variados estágios de putrefação.
− O que foi aquilo? − perguntou Ruud, em desespero.
− Mortos − respondeu Martinho, bufando, ainda correndo. − Apenas corra. Eles vêm pelo cheiro e pelo som. Adoram a voz humana e o cheiro de comida. Barbarosca me contou. Não fale nada. Depois falamos. Apenas corra.
Acácia estava com medo, sentada em uma cadeira da varanda sentindo o sol matinal percorrer seu corpo. Primeiro no rosto, depois no busto e braços, por fim na barriga e no colo. O pai havia saído cedo em mais uma de suas buscas e ela estava só no casarão. Podia ouvir os colonos começando o seu dia, limpando o chão com uma vassoura, carregando baldes de água do riacho e ordenhando os animais. Ouviu um martelo distante e soube que Ferreira continuava seu trabalho na cerca. Um serrote e outro martelo, mas não eram na cerca. Alguém estava se ocupando de outras construções na propriedade, ou em reparos. Muita coisa fora necessária para que o lugar ficasse habitável, pelo menos três dias de limpeza e arrumação. Não encontraram nenhum corpo para queimar, apesar de ser notório que pessoas haviam morrido ali – o cheiro deixava claro isso. Eles só não estavam mais lá. O que era mais preocupante do que o contrário.
− Dia, Acácia.
− Dia, Gumira.
− Licença, vou entrando para fazer o almoço.
− Fica à vontade.
Os pés de Gumira rasparam no assoalho antes de entrar. Logo depois surgiu no ar um cheiro de fogo aceso e de panelas cozinhando. Gumira aproveitou para passar uma vassoura na casa e bater os tapetes na varanda. Depois levou um chá quente de capim-cidreira para Acácia, um pouco antes de voltar para seus afazeres. A normalidade de toda aquela situação era absurda. Soava tudo muito errado, quase pecaminoso. Como se tivessem em pouca estima todas as almas perdidas para o demônio presente naquela mata. Não deveriam buscar a normalidade, mas a destruição daquele mal. Nesse sentido, o padre do navio estava mais certo do que eles. Era preciso travar uma guerra e não viver fingindo que o mal não existia, ou convivendo com sua presença. Deus não iria querer tal coisa de seus filhos.
Esses pensamentos apavoravam Acácia. O pai estava lá fora novamente. Logo no primeiro dia saiu em expedição, sem mesmo desempacotar seus pertences e voltou relatando suas descobertas. Encontrou outra propriedade abandonada, mas diferente da deles, lá havia mortos. Apesar de nunca tê-los visto antes, o pai os reconheceu de imediato. Ficavam parados na grama alta, o rosto para cima voltado para o sol, sem mexer nem um músculo sequer, como se farejassem o ar ou esperassem por algo. Os que se mexiam faziam isso tropegamente, como se não tivessem equilíbrio ou faltasse algum item muscular precioso para isso. O corpo deles era macilento e desnutrido e os olhos eram fundos. A carne era retesada em várias partes, nas quais pequenas ulcerações se rompiam, como a casca de batatas cozidas demais; o cheiro era de podridão e havia várias feridas grandes neles, que sujaram suas roupas há algum tempo, mas que agora não vertiam mais nada.
No segundo dia, o pai voltou calado de sua busca, quase não respondia às perguntas e cheirava a excremento. Acácia ficou sabendo por um dos jagunços que o acompanharam que eles haviam perdido um dos companheiros para dois mortos na mata. Eles atiraram nas criaturas para tentar libertar o amigo, mas elas simplesmente continuaram comendo-o. Tiveram de deixar o homem para trás e voltar correndo para a propriedade. O pai havia ordenado que ninguém ficasse sabendo do ocorrido, mas o jagunço achou que pelo menos Acácia deveria saber que uma pessoa havia morrido. O homem acreditava que o alcaide não queria alarmar as pessoas com a morte de uma pessoa, mas Acácia sabia que o motivo era outro. Ele não queria que as pessoas soubessem que os mosquetes não serviam de nada contra os mortos.
No terceiro dia, o pai voltou sozinho e chorou a noite toda trancado em seu quarto.
− Pai, vamos embora − suplicou ela do lado de fora da porta. − Não saia mais atrás dela na mata. Está tudo bem. Vamos voltar para Portugal.
Ele não atendeu e no dia seguinte saiu cedo com outros jagunços. Acácia puxou uma cadeira e sentou-se à varanda para aguardar seu retorno.
Gumira chegou com o chá para Acácia. Puxou um banquinho e sentou-se ao seu lado.
− A senhora iria gostar de ver o céu. Está muito bonito, azul e branquinho de nuvens.
− Obrigada, Gumira − disse bebendo seu chá. Acácia imaginava Gumira negra, cheia e de braços fortes, mas não tinha ideia de como ela era de verdade, nunca tivera coragem de pedir que a deixasse tocar seu rosto. Será que iria estranhar?
− Que merda é aquela? − perguntou Gumira um pouco antes de Acácia conseguir ouvir os homens gritando perto do portão.
— Parece que tem umas pessoas chegando.
− Homens?
− Sim, uns dez.
− Como eles são, Gumira? Como se mexem?
− Peraí, que vou lá ver.
− Não, não vá — implorou Acácia, mas Gumira partiu.
Acácia colocou sua xícara sobre o banquinho de Gumira e segurou com força a saia. Aguçou como pôde a sua percepção, prestando atenção em tudo à sua volta. Ouviu passos apressados em direção ao portão. Gente gritando ordens. “Segurem o portão”, “Meu Deus, pai amado, proteja-nos”, “Atirem neles!”. Então, ouviu o primeiro disparo, depois outro e mais outro. O ar ficou povoado do cheiro de ovo podre. Ao todo, contou dezesseis estouros antes que o portão se quebrasse. Os mosquetes caíram pesados no chão e as pessoas correram para salvar a própria vida. Acácia se levantou ouvindo os gritos de desespero e de dor. Havia rosnados e os mesmos cheiros que sentiu na vila. Ela recuou em direção à porta, considerando como poderia abri-la para Gumira quando ela voltasse, imaginou se a porta dos fundos estaria fechada, pois Gumira gostava de arejar a casa,. Será que as criaturas passavam por janelas? Tropeçou no banco de Gumira e caiu torta no chão de madeira da varanda. Não conseguia levantar, os gritos eram demais. Colocou as mãos sobre os ouvidos tentando afastá-los, encolheu-se como um bebê no ventre de uma mãe.
Uma mão agarrou seus pulsos e puxou-a para cima. Ela foi carregada para dentro da casa e colocada sobre o catre. A porta e as janelas foram batidas. Alguém arrastou móveis pela sala.
− Está fechada agora, senhorita.
− Ruud?
− Ora, então fala português, pilantra. Sua voz, o que aconteceu?
− Apenas uma febre, querida. Nada perto diante disso tudo.
− Precisamos fugir − disse novamente Ruud. − O som dos mosquetes vai atrair mais deles. Em breve vão nos cercar, precisamos aproveitar enquanto se refestelam e partir para o navio de Cavendish.
− Já disse, ele não vai nos aceitar enquanto não encontrar o seu ouro.
− Cala a boca, velho maluco. Não tinha ouro nenhum! Andamos esses dias para nada, não tinha nada lá!
− Ruud, me escute, era para estar lá, aconteceu alguma coisa. Nós não olhamos direito. Barbarosca me disse. ‘O homem santo virá do além-mar e encontrará’.
− Talvez você não seja tão santo assim, afinal.
− Não, não, era para mim. Era para mim − disse ele, e então ficou em silêncio.
− O que aconteceu? Ele morreu? − perguntou Acácia.
− Desmaiou — respondeu Ruud. − Temos de partir.
− Mas Gumira, meu pai e os outros...
− Escute-me, Acácia − disse Ruud, segurando os ombros dela. − Estão todos mortos e em breve estarão aqui para nos devorar.
Demorou um tempo para Acácia compreender aquilo, mas de repente imaginou as mãos ternas de seu pai úmidas de sangue, fedendo a podridão, segurando seus braços e aquilo a fez soltar um grito de pavor.
Ruud tapou a sua boca com as mãos: − Quieta, escute!
E o pavor dela aumentou, pois lá fora não havia som algum.
Ruud foi até a janela e olhou pela fenda entre as duas folhas de madeira. Era tarde demais. Os mortos estavam na varanda e se aglomeravam em torno da casa, largando suas refeições pelo meio do caminho. Pelo portão derrubado, viu mais criaturas chegando, alguns corriam, mas a maioria caminhava como bêbados. Ouviu um baque na porta da sala e um resmungo, e soube que logo eles forçariam todas as entradas, inclusive as paredes de madeira.
A oportunidade de escapar sem serem vistos havia passado. Ruud sacou o sabre espanhol que havia roubado e voltou para perto de Acácia.
− Há algum porão na casa? Ou um lugar onde podemos nos esconder?
− Não. A casa é simples. Não tem essas coisas, nem despensa temos.
Ruud raciocinava rápido, cogitando as alternativas. Poderia tentar passar pelos mortos correndo, lutando o mínimo possível, empurrando e evitando ser cercado. Se chegasse até uma das cercas altas, poderia saltá-la e ganhar a mata. Mas não poderia fazer isso carregando Martinho e guiando uma moça cega. A opção de deixá-los para trás passou pela sua cabeça, mas logo a descartou, não poderia conviver com isso pelo resto da vida. Olhou para o assoalho de madeira e lembrou-se que a casa era alta.
− Levante-se − sussurrou para Acácia. Depois usou o sabre para despregar algumas tábuas do chão, só o suficiente para que pudessem passar. Foi até a cozinha e colocou suprimentos em sua mochila, depois virou o catre perto das madeiras soltas de forma que pudesse colocá-lo em pé sobre o assoalho aberto depois que entrassem.
− O que está fazendo? − sussurrou Acácia.
− Logo vão estar aqui dentro, precisamos nos esconder e esperar que partam.
− Ruud, isso é loucura. Eles não vão embora.
− Deus, Deus, vai mandar ajuda − resmungou Martinho em seu sono febril.
− É o único jeito − disse ele, puxando as tábuas com cuidado para não fazer barulho.
Então, uma pancada forte levantou as tábuas contra o peito de Ruud e dois mortos surgiram pela abertura. Acácia soltou um grito e se afastou dali. De imediato, portas e janelas começaram a ser forçadas e as paredes pareciam se envergar com o peso de corpos que gemiam e urravam contra elas. Braços romperam as folhas finas das janelas e uma mão segurou o cabelo de Acácia.
Ruud se levantou atordoado, pegando seu sabre para enfrentar as duas criaturas dentro da casa. Encontrou-as presas no buraco estreito, lutando pelo privilégio de ser a primeira a entrar na casa. Ruud golpeou seus pescoços, lacrando a passagem com seus corpos, e depois foi ajudar Acácia. Cortou o braço que a segurava e trouxe a moça para o centro da sala. Todas as paredes tremiam e mais braços puxavam e empurravam as lâminas de madeira das janelas.
− Deus vai ajudar − murmurava Martinho deitado no chão.
− Acácia − chamou Ruud. A moça chorava desesperada, mal conseguindo respirar. Ruud sentiu o peso do sabre em sua mão e mediu se conseguiria um golpe limpo no pescoço dela. Não queria que sofresse, mas a verdade era que talvez precisasse de mais de um golpe. Se pelo menos tivessem mais tempo...
− Infiéis! − alguém gritou lá fora. − Contemplem a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Em meio ao desespero e à ruína de sua sanidade, Acácia ouviu a voz de seu pai:
− … e de sua sagrada mãe!
A parede parou de gemer.
− Pai? O que está acontecendo?
− Filho da puta! − exclamou Ruud.
− O quê? Por favor, me explique.
− Seu pai está perto do portão erguendo uma imagem da Santa da Penha acima da cabeça. Em volta dele estão seis de seus homens.
− Ele a encontrou? − Acácia caiu de joelhos e uniu as mãos em uma prece.
− O quê? Ele também a procurava?
− Sim, viemos para cá por causa dela. Meu pai soube que ela curava os enfermos e então…
− Trouxe você até aqui para que ela a curasse?
− Sim, gastamos todas as nossas posses para isso. Por favor, conte-me mais. Como as pessoas estão se curando? Há luz saindo da Santa? O senhor consegue ver os anjos que a seguem? Eles estão de joelhos em oração?
− Moça, venha comigo.
Ruud puxou-a pelo braço, mas não a levou para a frente da casa. Parou apenas para jogar Martinho murmurante em um dos ombros e depois a levou pela porta da cozinha.
− O que está fazendo? Para onde está me levando?
− Silêncio.
− Não, meu pai, leve-me para meu pai.
− Seu pai está morto.
Então, ela ouviu os gritos e soube que era verdade.
Andaram o mais rápido que puderam pela trilha da mata. Ruud arfava a cada passo, mas não largava dela e nem de Martinho, a mochila pesada com os mantimentos cortava um de seus ombros. De tempos em tempos precisavam parar, mas eram descansos curtos, apenas o necessário para um novo fôlego.
— Não posso acreditar que a Santa não o protegeu — disse Acácia em uma dessas paradas. Era a primeira coisa que falava depois de muito tempo.
− Aquela não devia ser a imagem certa − arfou Ruud, massageando o ombro. − Há muitas capelas por aqui, ele deve tê-la pego em alguma delas. É um culto comum nestas terras.
− Pobre pai. Estava tão desesperado em me salvar…
− São tempos desesperados, senhorita.
− Conseguiu o que veio buscar aqui, senhor Ruud?
− Talvez.
Era noite quando chegaram até o navio de Cavendish.
− Algo está errado − disse Ruud, largando Martinho na areia da praia.
− O que está vendo? − perguntou Acácia.
− O navio está às escuras. Parece que está vazio.
− Você está errado − disse uma voz de dentro da mata. De lá veio Batista com um sabre desembainhado. − Sabia que voltariam cedo ou tarde para cá.
− Batista − disse Ruud, se colocando entre Acácia e o pirata. − Por favor, temos de sair daqui. Há mortos em toda parte. Este lugar é um Inferno esquecido por Deus.
− Onde está meu ouro, moleque? − perguntou ele, se aproximando, o sabre ainda baixo.
− Nós não o encontramos.
− Mentira — acusou ele.
− Eu juro.
− Esse merda sabe onde está − disse ele apontando a espada para Martinho.
− Deixa ele em paz. Está doente.
− Foda-se a doença dele. Eu vi todos os meus companheiros morrerem por causa dele e agora quero meu pagamento.
Batista levantou com facilidade o corpo do padre e jogou-o sobre o ombro.
− Quanto a vocês, seus merdas, vou cortar suas gargantas e… − Batista percebeu um pequeno ferimento na perna de Martinho. Duas fileiras infeccionadas e vermelhas de pequenos ferimentos em linha, como se tivessem sido provocados por uma mordida. De repente, sua garganta queimou quando Martinho o abocanhou ali.
− Martinho! − chamou Ruud, mas aquele já não era o velho.
O holandês puxou o braço da moça e se jogou ao mar enquanto Batista se debatia tentando se livrar da criatura.
Nadaram com dificuldade contra as ondas até o navio. Ruud teve que arrancar as saias de Acácia para que ela pudesse se mover mais livremente, mas mesmo assim era muito difícil para ela fazer qualquer coisa, além de se debater. Por fim, deixou que Ruud a puxasse pelos ombros. Subiram a bordo por uma escada de cordas. Lá em cima, Acácia segurou apertado o braço de Ruud. − O cheiro − avisou ela. − Há diversos corpos ensanguentados pelo chão − narrou Ruud para ela. Estão devorados. − Oh, meu Deus! O que faremos? − Precisamos do barco. Segure a minha mochila, Acácia. Eu já volto. Ruud se afastou, pé ante pé, envergando o assoalho a cada passo cuidadoso. Então, Acácia não o ouviu mais. Prendeu a respiração, tentando aguçar a audição. Ouviu o mar roçar o casco, o vento contornando os mastros e outros passos. Vindos da proa. − Quem está aí? − perguntou Acácia. − Sou eu, senhora. Antônio Amparo, da vila, lembra-se? − Por que está se esgueirando? − Não estou, apenas estou sendo cuidadoso − Acácia abriu a mochila e enfiou a mão lá dentro à procura de uma arma para se defender. Viemos atrás do navio assim que deixaram a nossa vila, senhora. Não sabe o que é viver neste Inferno. Só queríamos ir embora. Subimos sem qualquer resistência, ninguém veio nos impedir, então entendemos tarde demais o porquê. O desgraçado do pirata... Cavendish... a recompensa não era o bastante para ele. O filho da puta queria mais. Ele trouxe a bordo aquelas criaturas. Ele iria levá-los para o Continente. Exibi-los em alguma merda de circo ou coisa parecida. − O senhor foi mordido? − O porão estava lotado deles. Todos os meus... − Não se aproxime, por favor. Do porão, Acácia ouviu um terrível urro, diversos rosnados e sons de luta. − Este navio está aqui por causa de seu pai. − Por favor, fique onde está − suas mãos tocaram algo pesado dentro da mochila, como um vaso de argila, ou uma pedra rombuda. − A culpa é de seu pai pela morte de todo o meu povo e eu vou ter minha compensação. Acácia puxou o objeto da mochila e, por instinto, espatifou-o com toda a força contra o rosto de Antônio Amparo. Mas não antes de ele furá-la com algo na barriga. No início, não sentiu nada. Levou a mão à ferida e sentiu os dedos úmidos. Deitou de costas no assoalho e pressionou com toda a força, tentando impedir que o sangue saísse. Então, veio a dor. Aquela ardência terrível de um corte afiado. Acácia pensou em chamar Ruud, mas naquele momento ele já deveria estar morto também. Os sons de luta haviam parado. Tudo o que ela podia ouvir era um som pesado de passos subindo as escadas. Passos que não eram de Ruud. Então, por que protelar? Suas mãos escorregaram para o lado do corpo e subitamente Acácia sentiu suas energias se esvaírem. Seus dedos tocaram os cacos no assoalho e ela começou a alucinar. Primeiro viu uma luz tênue à sua frente, vinda de uma imagem fora de foco, seria um anjo vindo buscá-la? Sua visão ficou mais nítida e ela viu os mastros do navio e uma enorme lua cheia por trás de nuvens castanhas, grossas e felpudas. Não, não eram nuvens. Acácia ergueu o braço e tocou o pelo macio do animal. − Acácia, oh, Acácia − a voz era diferente, gutural, mas ela a reconhecia. − Eu não contei ao velho que sabia ídiche e que podia ler seu mapa. Enquanto ele dormia, cheguei primeiro à caverna. Foi quando o atacaram na floresta − seu rosto, seus dentes, seu focinho. Não fazia sentido. − Era a minha oportunidade de me ver livre da maldição, mas Ela não me curou. E agora está tudo acabado. Acácia virou o rosto e finalmente entendeu. Ao lado de sua cabeça havia dois olhos azuis de gesso que a encaravam com serenidade que só uma mãe poderia ter. Sobre sua fronte partida, o manto azul mais lindo que já tinha visto na vida… e o último.
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