Heroína, de Sarah Vervloet
Desafetos eram o ponto de partida. O dia foi cheio com polícia, muro, suor, miolo quente, morro, bate-boca, gritos, perdões, e Vulto queria dormir, embora fosse impossível antes das 4h. Havia separado toda a mercadoria para M.F. buscar, antes que ele mesmo fizesse o serviço. “Ser mula nunca mais”, falava para si, dono de uma ascensão orgulhosa: era o chefe do tráfico. Outros viriam, mas ele só queria ver M.F. subir com tudo – tudo aquilo que se tornou dele, também por merecimento do cargo.
Ela subia a escadaria que tem nome de heroína, e fazia questão porque, por ela, andaria sempre com um balde de água quente nas mãos, em razão dos inimigos e também dos homens sujos. Por ali, toda vez que passava, tinha a mesma visão da ladeira afunilando-se e eliminando saídas, contribuindo para o nascimento da coragem de um ícone feminino: ela. As paredes também se entregavam, “destrua o sistema”, “tudo dito, nada feito, fito e deito”, “meu corpo, minhas regras”, “só a liberdade transforma”, “revolução, foda-se o patrão, foda-se o padrão”. Era assim.
Descia delicada nos saltos, reverenciada por uns, temida por outros. Carregava na bolsa pedras, papelotes e buchas. As unhas longas e enfeitadas serviam como garras, a roupa camuflada em fera, de saia e piercing no umbigo, compunham o corpo de atleta. Nem um arranhão.
Quando chegou, M.F. já tinha o plano desenhado na cabeça. Mas, como num urro de acasalamento, ela beijou a careca de Vulto, porque ele adora, desceu até as bochechas com pequenas mordidas e, mordiscando, pegou uma orelha, toda a nuca e desceu mais. Com isso, fez seu perfume se alastrar. Uma serpente preparando a armadilha, louca para dar o bote, ela falava devassidões ao pé do ouvido. Ele gemia, sentindo as mãos e as unhas de M.F. arrancar os pelos do peitoral, soltar a fivela do cinto e esperar de boca aberta o que quer que ele quisesse fazer com ela. Aos comandos ela atendia, e a voz mansa não parava um segundo.
“Você é a única pessoa em quem eu confio”, ela disse, limpando-se. Ele fechou a camisa, olhou em volta, do alto da janela, tudo tranquilo, “O que você quer?”. “Tem um cara me perseguindo. Um idiota. Um vagabundo.”, soluçou de medo. Vulto pensou em pegar no braço, puxar, sacudir,
xingar, bater. M.F. era mais uma como as outras, tudo igual. “Já entendi. Você me traiu.”, ele soltou fingindo não se importar, mas apalpando a arma. Ela pensou em inúmeras respostas para quando chegasse este momento: era um estuprador à solta, um falso do beco, policial à paisana, irmão mais velho, um drogado, um inocente, um moleque. Mas ela sentiu o frio da indecisão do que dizer para não despertar mais um desafeto. Ela só queria um predador, era uma fêmea no cio para eliminar. “É um ex-namorado, de muito tempo, saiu de um buraco e quer me levar de volta pra ele”. Seduções, induções. Fosse quem fosse, o melhor era dar a extinção daquilo e Vulto não nega fogo.
É claro que M.F. não tirou isso do nada. Desde que começou a acompanhar o chefe para suprimir um ou outro, compreendeu sua função de boa moça. Não sabe o que são os feromônios, mas sabe que tem um poder insuperável para atrair os homens. E Vulto tinha sua isca, pronta e feita, pois, quando não é isso, são as viagens. Terminal, rodoviária, aeroporto. Rondônia, Mato Grosso, Amapá. Ela então se torna executiva, cabelos escovados, sapatos fechados, óculos. O melhor bonde do tráfico jamais visto
ou flagrado. Disposição não lhe falta, mas sim reconhecimento.
Ela precisava derrubar algumas peças de um jogo disputado.
Vulto ligou para seis. Fecharam a rua e mandaram descer, porque justiças não são pedidas nem perdidas, são executadas. “Já deu pro cara nesse mundo. Vamo mandá ele embora!”, afirmava para os outros. Pediu para que não peneirasse antes de saber quem era.
Atiraram nas pernas, mas o alerta foi armado. Vulto chegou perto, levantou o sujeito e quis saber o que ele queria com sua mulher. Sem dizer palavra, Vulto reconheceu a tatuagem no braço, o cordão de prata e o ódio. Lembrou-se de quando esteve do outro lado, era o mesmo, um chefe de lá procurando abrigo aqui. O outro lhe balbuciava ameaças, pois não perdoaria aqueles seis. Todos eles se olhavam desesperados porque da guerra eles ainda não tinham participado – Vulto comandava tudo tão bem que a polícia respeitava. Entretanto, matar um chefe? Aí sim, guerra. “Pô, Vultão, esse aí fecha com a gente! O que a gente tá fazendo, chefe?”. Vulto ainda segurava o outro pela camisa quando ouviu disparos. É claro que ele não tinha vindo sozinho. Parecia subir um exército de muito mais de seis.
“Não tem jeito, queima logo”, foi a última ordem para a retirada. De cada um dos seis, saíram oito ou nove tiros, corridos, fugidos. A comunidade despertou com Vulto pedindo a todos para voltarem a dormir porque estava tudo no controle. Controle de quem? Ferviam as tripas por dentro e as ruas desciam e subiam com adrenalina e lembrança de que ninguém mais conhecia aquele bairro como ele. E ele sabia que M.F. não vivia ali, tampouco crescera ali. Era de lá, do outro lado, de onde vinha batendo o salto todos os dias. Era pouco provável, portanto, que ela ainda o estivesse esperando. E, ainda, que voltaria. M.F., na verdade, após vender toda a mercadoria daquela noite, já mordia os lábios do mais novo chefe daquele outro lado.
Leia o livro na íntegra aqui: bit.ly/ebooksarahvervloet
Kommentare