
"Assim como o amor, ser mulher por si só já é uma arte e ato de coragem. Agora, ser mulher, negra, nordestina e que ama outra mulher é um ato revolucionário". É dessa forma que Nina Maria se apresenta ao mundo: poeta, mulher, preta, baiana e feminista. Em seu segundo livro, Há nove luas em mim, ela escreve sobre a revolução que é amar a si mesma e amar outra mulher.
Conversamos com a escritora sobre poesia, feminismo e diversas questões que atravessam o livro. Confira a entrevista:
1 - Queria começar falando sobre o título do livro “Há nove luas em mim” e toda a referência que você faz aos astros como o sol, Vênus, às estrelas e também as referências à natureza, como tempestade, ventania… Eu vejo que isso se relaciona intimamente com o feminino, mas gostaria que você comentasse um pouco sobre a relação da natureza com a sua literatura.
É um pouco difícil explicar esse contato com a natureza através da escrita, visto que, quando cito qualquer elemento que seja, faço de uma maneira tão natural que acabo não percebendo, é um ato íntimo. Eu apenas seguro a caneta e vou traçando/desenhando toda essa mística feminina que é a natureza, através de uma dualidade, como nessa poesia, por exemplo: Nas linhas da tua pele/ Deslizo odes em tua Vênus/ No rodopiar dos anéis de Saturno/ Juro amar-te; ao mesmo tempo em que a escrita é muito natural em/para mim, ela surge e se reafirma e se refaz a todo instante através da minha visão de mundo, das minhas referências e escrevivência literárias, musicais e artísticas, tanto do cenário atual como do antigo. Parte dessas referências vem também da parte familiar, sou a mais nova de duas famílias de culturas diferentes e, sendo geminiana, acabo absorvendo um pouco de cada. Aos 20 anos e com um segundo livro sendo lançado, sinto que já tenho vivido mais que isso, como se eu tivesse nascido há 10 milhões de anos.
2 - O livro é dividido em duas partes, a Parte 1, que se chama “O amor”, fala do amor entre mulheres, fala de amor próprio, um amor que significa vida. Gostaria que você falasse um pouco da importância de marcar essa posição e identidade como uma mulher lésbica em sua literatura.
Assim como o amor, ser mulher por si só já é uma arte e ato de coragem. Agora, ser mulher, negra, nordestina e que ama outra mulher é um ato revolucionário. Numa sociedade patriarcal onde o cânone da literatura, bem como a conhecida Academia Brasileira de Letras, é dominado por homens brancos, letrados de classe alta, faz-se necessário reafirmar a todo instante, ainda que seja cansativo, o papel e a importância de uma literatura, de uma escrevivência, como diz a Conceição Evaristo, feita por mulheres, para além de brancas, negras e lésbicas, que são duplamente apagadas pelo racismo, misoginia e lesbofobia. É necessário que eu escreva e dê voz e vida as minhas poesias, as minhas vivências, pois através dessa escrita acabo honrando minhas ancestrais e dizendo que nós podemos sim conquistar o mundo através da literatura. Quando me perguntam quando eu comecei a pautar essa escrita voltada à temática lésbica e feminista, não sei de um momento exato, preciso. Sei que escrevo/sou assim, que escrevo, resisto e sobrevivo através da poesia, da escrita.
3 - Os gêneros textuais se misturam no livro. Temos poemas como maioria, em versos e estrofes, e outros que têm uma estrutura mais narrativa. Há diferença para você quando vai escrever poesia ou prosa? Ou a forma de criar e escrever é a mesma para os dois?
Não há uma forma na criação dos meus escritos. Tudo flui de uma maneira muito natural ao ponto de deixar-me assustada. Algumas vezes vou escrevendo e emocionando-me em cada palavra que nasce. Eu sou totalmente entregue à escrita, não sou eu que dito as normas, é ela. Eu sei que ser escritora têm isso de ir aperfeiçoando a escrita, criando uma rotina e afins, já tentei, mas não consigo. É algo natural, às vezes uma palavra ou uma lembrança leva-me para um poema antes mesmo de escrevê-lo. Eu apenas deixo a poesia me guiar, confio nela.
4 - Além de não se prender ou limitar aos gêneros, você também tem poemas em outra língua, como francês. Como é a sua relação com esse idioma? É mais fácil fazer poesia em outra língua, ou mais difícil?
Para além do português, sou apaixonada por conhecer novos idiomas e culturas. No ensino médio, através das aulas de literatura, pude conhecer a literatura turca, alemã e a francesa, sendo esta última a que mais me chamou atenção. Ao ler Madame Bovary, de Flaubert, me imergi na cultura francesa e em todo seu mundo literário que, não me restou dúvidas em optar pelo curso de Letras vernáculas com língua francesa. E essa relação foi se intensificando mais através de aplicativos de aprendizagem musica, desde as atuais às mais clássicas, como a saudosa Edith Piaf, filmes e séries. Com minha inserção na universidade e nos diferentes tipos de francês existentes, devido à cultura francófona, desci elevar minha poesia a outro tipo de língua a fim de criar outra e nova versão do meu eu. Escrever em francês, atualmente, para mim, é fácil na medida em que vou conhecendo novas palavras. Com isso, tanto faz traduzir ou escrever, para mim o que importa é a capacidade de criar novos eu-líricos fragmentados da minha personalidade.
5 - Eu vi duas referências a soneto bem populares na literatura em língua portuguesa “O soneto da fidelidade” (Vinicius de Moraes), e “Amor é fogo que arde sem se ver” (Camões), em que você subverte um pouco do sentido tradicional desses versos, trazendo para o contexto do amor entre duas mulheres. Queria que você falasse um pouco sobre esses poemas.
É sobre quebrar tradições e padrões. A versão que trago de soneto da fidelidade é sobre como o feminino, como a própria mulher pode e deve também descrever e sentir o amor, como ela pode cultuá-lo junto com sua amada, visto que na sociedade patriarcal branca que vivemos, o cenário da literatura, quando diz respeito a descrever o amor e a mulher, é dominado por homens. É sobre reescrever a história da literatura, da poesia e inserir a mulher, da voz e protagonismo, deixá-la livre para ser quem ela quiser, amar, falar e sentir. A mulher tanto pode ser a inspiração do poema como também pode ser quem escreve/cria, dá vida ao poema. É sobre não ter amarras na literatura, precisamos ensinar isso aos que estão por vir. E em Amor é fogo que arde sem se ver é toda essa reafirmação da autonomia da mulher, no sentindo de que temos plena certeza sobre nossos sentimentos. É sobre fazer nascer na literatura uma nova mulher que dê voz a todas as que estão e são representadas na literatura.
6 - A segunda parte do livro, “O caos”, é bem antagônica à primeira. É mais melancólica e intimista, com um tom mais sombrio. O que significa essa segunda parte do livro para você?
A segunda parte é um grito de liberdade repleto de histórias. Por isso, acho-a mais interessante que a primeira. Em caos, eu me jogo no obscuro dos sentimentos e enfrento com o que tenho de mais belo em mim: a poesia. São poemas que contam alguns momentos da minha vida, momentos vividos acompanhada de outras pessoas, dos quais eu sempre tiro alguma lição, e acaba tornando-se texto, frases e poesias. É sobre transformar a dor, a angústia e o medo em poesia também, tirar um pouco isso de dentro. Eu sempre renasço quando escrevo esse tipo de poesia mais intimista. Todo esse caos me fez encontrar a fonte do amor-próprio e ir bebendo na medida em que cada poesia nascia.
Entrevista feita pela jornalista e escritora Lívia Corbellari, idealizadora do projeto Livros por Lívia e responsável pela comunicação da Editora Pedregulho.
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