"Elementos estéticos e relações simbólicas no ritual de Reis de Boi" é o resultado da sua dissertação de mestrado da Fabiane Vasconcelos, com fotos da própria pesquisadora. A Obra materializa um bem cultural imaterial constitutivo da nossa cultura, além de uma rica pesquisa sobre esse importante ritual cultural encontrado no Norte do estado do Espírito Santo, nas cidades de São Mateus e Conceição da Barra.
O livro busca um discurso que visa dar voz aos seus integrantes, que associam sua origem aos antepassados vindos da África. O trabalho da pesquisadora também mostra - pela análise do ritual sob a luz dos Estudos da Performance – que o Reis de Boi conserva elementos simbólicos e artísticos, expressos principalmente através das performances corporais de seus integrantes, que evidenciam a contribuição do negro em seu ritual.
Entrevistamos a pesquisadora Fabiane Vasconcelos para conhecermos mais um pouco dessa importante obra:
1 - Como foi seu primeiro contato com o ritual "Reis de Boi"?
Nasci em São Mateus-ES e me lembro de vê-los passar em grupo à beira das estradas quando criança. Não sabia quem eram, mas lembro que me chamou a atenção os chapéus coloridos com longas fitas e o fato de andarem a pé. Isso é um flash de memória que veio à tona anos mais tarde quando comecei a pesquisa e soube que antigamente eles saíam a pé por 3 dias seguidos pelas estradas indo de casa em casa e pernoitando nas casas de devotos.
2 - E como surgiu a vontade de fotografar e iniciar a sua pesquisa de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e a dissertação de mestrado sobre os Mestres dos Reis de Boi"?
Minha formação é na área de artes. Minha primeira graduação foi em Artes Plásticas e a fotografia sempre foi uma forma de expressão. Mas foi na segunda graduação, de Artes Visuais EAD-UFES que ocorreu de fato meu reencontro com o Reis de boi. Uma tarefa dada em uma disciplina do curso, chamada Interações culturais, deveríamos mapear as práticas culturais da região, na época eu morava em São Mateus e saindo à campo encontramos o Reis de boi, a capoeira e o Jongo. A minha identificação com o Reis de boi foi imediata: a estética popular e colorida, as músicas, tudo era familiar e afetivo e ali decidi qual seria meu TCC. Em 2011, comecei a acompanhar as festas, a me aproximar dos grupos, a fazer entrevistas e a começar um vasto banco de dados com fotografias e vídeos sobre o Reis de Boi. E não parei mais com a pesquisa até a entrega da dissertação do Mestrado em Artes, em 2017. A dissertação não é focada nos Mestres, embora seja dada atenção especial a eles porque são a fonte mais importante da pesquisa, mas o foco é principalmente a prática cultural em si e todo o seu ritual.
3 - Você aborda, principalmente, a contribuição do negro no "Reis de Boi". Por que você escolheu esse recorte?
Esse recorte veio principalmente da constatação de que havia uma dissonância entre o discurso encontrado nos livros sobre a origem do Reis de boi (origem ibérica) e o pensamento dos Mestres e integrantes dos diversos grupos entrevistados, que atribuíam uma origem africana a essa prática cultural. Percebi que só era levado em conta a origem da devoção a Santos Reis, que também mostro no livro, mas não era levado em conta a contribuição do negro, que representa hoje a grande maioria dos integrantes dessa prática cultural. Fui buscar então, através da análise da musicalidade, corporeidade e visualidade presentes nos rituais, como esses elementos poderiam evidenciar a contribuição o negro nessa prática cultural e para isso foi fundamental a observação e análise das performances individuais dos integrantes, e a performance coletiva dos grupos, sob o viés dos Estudos da Performance Cultural.
4 - Houve algum momento curioso, que te chamou muito atenção, durante as pesquisas de campo e você gostaria de compartilhar?
Foram vários momentos de aprendizado nesses sete anos de pesquisa. O que posso dizer é que tive a oportunidade de estar muito próxima dos grupos (foram 10 grupos) e por isso o livro traz coisas inéditas e que são orgulho para mim. Consegui detalhar em tabelas todos os momentos do ritual, comparar a composição das Marchas em alguns grupos, registrar Marchas que não são mais cantadas, a não ser por um grupo e que não tem esse registro escrito em nenhum outro lugar, pois tudo é passado através da oralidade e da prática. Além disso registrar e detalhar os modos de fazer de todas as etapas do ritual: a confecção das máscaras, bichos, vestimentas, chapéus. Tudo isso visto de perto, de dentro das casas dos Mestres, acompanhando os grupos nas casas de devoto, nas festas. Enfim, o livro, decorrente da dissertação de Mestrado, traz um mergulho profundo e tenta mostrar a riqueza dessa prática cultural.
5 - Resumidamente, o que de mais importante você aprendeu?
Aprendi que a fé é um compromisso individual maior que qualquer coisa, que a fé motiva, ajuda a enfrentar as maiores dificuldades e consegue manter de pé tanta gente que teria tudo para desanimar. Só que para mim a fé não necessariamente tem a ver com religião, é algo em si mesmo. Mas no caso dos Mestres de Reis a fé em Santo Reis faz com que eles, ano após ano, mantenham esse ritual, passando para a geração seguinte esse compromisso de fé.
6 - Para finalizar, qual a importância de preservar a cultura do "Reis de Boi"e de elucidar a contribuição negra para o ritual?
O Reis de boi é uma prática cultural capixaba, que só aparece no norte do ES. Como toda prática cultural reflete um modo de vida, uma crença, um modo de expressão, um modo de estar no mundo específico de um grupo, uma comunidade. A riqueza cultural que essa prática nos revela, com suas músicas, instrumentos, sua vestimenta colorida, com seu ritual de apresentação tão específico, traz nela marcas do nosso passado, mostra a grandeza da nossa cultura.
Achei importante mostrar que o Reis de Boi é uma prática cultural proveniente da junção dos elementos trazidos pelos africanos, portugueses e indígenas, não sendo uma prática ibérica pura e, portanto, negando essa origem como influência mais determinante e buscando evidenciar a contribuição do negro, contribuindo para a construção de um discurso menos excludente para seus integrantes.
Entrevista feita pela jornalista e escritora Lívia Corbellari , idealizadora do projeto Livros por Lívia e responsável pela comunicação da Editora Pedregulho.
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