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Entre a aridez e a resistência: a travessia poética de deserto sozinha

Foto do escritor: Editora PedregulhoEditora Pedregulho

A poesia de Jeovanna Vieira em deserto sozinha é um mapa íntimo de territórios áridos – sejam eles afetivos, geográficos ou históricos. O título já sugere um paradoxo: o deserto, espaço de vastidão e escassez, se cruza com a solidão, que aqui não se apresenta apenas como isolamento, mas como um estado de percepção da vida.

O livro é marcado por uma escrita que se equilibra entre a memória pessoal e uma crítica social afiada. Jeovanna não apenas relata experiências, mas as transforma em imagens que ecoam, criando metáforas que transitam entre a fragilidade e a brutalidade. Sua linguagem é direta, por vezes cortante, e ao mesmo tempo profundamente lírica.



A (des)herança e a construção do eu

O poema Lastro (p. 19) sintetiza um dos temas centrais do livro: a falta de um alicerce herdado, seja ele material, cultural ou afetivo:

não me deixaram nada pelo que lutar nem uma olaria que eu precisasse cavar para retirar torrões

A voz poética sente a ausência de um legado, de algo a que se agarrar ou dar continuidade. A metáfora da olaria, que remete à construção manual, ao barro e ao trabalho de moldar, reforça essa lacuna. Ao longo do livro, essa falta se desdobra em outras camadas: a busca por identidade, a sensação de deslocamento e a tentativa de preencher vazios com palavras.

Esse questionamento sobre origem e pertencimento também aparece no poema Árido (p. 43), que desconstrói a ideia de solidão:

as dromedárias e as camelas não estão sozinhas para qualquer solidão as cáfilas as serpentes não estão sozinhas carregam entre as presas a peçonha as areias não estão sozinhas toda aquela imensidão

Aqui, há a sugestão de que a solidão não é absoluta. O deserto, que poderia ser um espaço de abandono, é povoado por formas de vida que coexistem. Assim, a solidão humana se torna uma condição menos fixa e mais fluida, um estado que pode ser compartilhado ou transformado.



Nascimento, corpo e herança materna

A experiência do corpo, especialmente da mulher, é um tema recorrente. Em Acrocianose (p.12), a poeta revisita o nascimento:

quando o médico anunciou nascida viva e o horário preciso da madrugada o bebê estava roxo porque espelhava o céu

A imagem da pele roxa do bebê como um espelho do céu sugere uma ligação imediata entre o corpo e o universo, entre a vida e a vastidão. O nascimento não é apenas um evento biológico, mas um fenômeno cósmico.

O poema Receita (p. 22) explora a figura materna e suas estratégias de sobrevivência emocional:

mamãe tem uma receita dois latões toda noite nenhum remédio pela manhã não amar nada demais

A mãe aqui é apresentada como alguém que aprendeu a dosar sentimentos, a evitar excessos emocionais para continuar existindo. O contraste entre a dureza dessa "receita" e a intimidade do verso sugere uma transmissão silenciosa de dor e resistência entre gerações.

Já em Quando nasceu o filho 3 (p. 54), Vieira subverte a ideia tradicional de maternidade ao associá-la à natureza e ao ato de plantar:

quando nasceu o filho 3 o que sonha em ser paleobotânico plantei uma jabuticabeira quando nasceu o filho 2 o que vai criar o novo estúdio ghibli plantei um ipê amarelo e bom você sabe para o filho 1 eu não plantei nada

O gesto de plantar árvores para os filhos indica um desejo de conexão e permanência, mas a ausência desse ritual para o primeiro filho sugere uma dor, um desencontro ou uma perda simbólica. A poeta deixa um vazio no verso final, criando uma ausência que ressoa.



A Vida cotidiana e a poesia no efêmero

Muitos poemas partem do cotidiano para criar reflexões maiores. Ambergris (p. 33), por exemplo, transforma o ato banal de lavar louça em um delírio existencial:

essa de pé diante da torneira sou eu devo ser eu porque gritam mãe mãe mas não sou

A cena doméstica se funde a uma crise de identidade. A poeta se vê presa ao papel de mãe, mas ao mesmo tempo deslocada dele. A sensação de estranhamento com o próprio papel social aparece diversas vezes ao longo do livro.

Em Perdi Poemas (p. 60), a autora reflete sobre a relação entre criação e sobrevivência:

perdi poemas porque minha mão estava suja de carvão eu rasguei centenas porque assim eu quis (...) e você comeu e você comeu e você comeu eu não sei se você já descobriu mas não dá pra comer poemas

Aqui, a repetição intensifica o dilema entre arte e necessidade. A escrita, apesar de poderosa, não supre as necessidades básicas da vida, e a voz narrativa se vê dividida entre criar e alimentar.


Poesia e política: o corpo e o mundo

A crítica social e política aparece de forma intensa em poemas como Planos para Emancipação (p. 58)

matar matar matar matar deus a natureza não não matar não matar ninguém

Esse verso carrega uma tensão entre a necessidade de ruptura com dogmas e a recusa à destruição cega. O poema sugere um desejo de transformação profunda da sociedade, mas sem abrir mão do respeito à vida.

Em Golden Shower (p. 48), há uma crítica mordaz à corrupção e à decadência política:

cento e cinquenta vezes para ser mais exata uma vara atravessa o atlântico num avião presidencial

O tom é ácido e provocador. O jogo de palavras sugere tanto a literalidade do ato descrito quanto seu significado simbólico, em uma referência clara ao Brasil contemporâneo.

 

Um Livro para Sobreviver

Deserto Sozinha não é um livro sobre solidão no sentido comum da palavra. É sobre o que se carrega no silêncio, sobre os desertos internos que atravessamos, sobre as ausências que moldam quem somos. A poeta não busca apenas descrever, mas fazer sentir – seja através da dureza de seus versos, da melancolia de suas imagens ou da fúria contida em suas palavras.

Ao fim da leitura, fica a impressão de que o livro não é apenas um conjunto de poemas, mas um espaço de resistência. Cada verso é uma pegada na areia – marcas que podem ser apagadas pelo tempo, mas que, enquanto existem, traçam caminhos.


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Escrito por Marília Cafe para a Pedregulho.


 

 
 
 

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