Carreata
Cândido declarou na reunião dos condôminos de um condomínio de luxo que protestaria em carreata contra a gestão do Síndico. Amanhã às oito — disse e saiu sem esperar qualquer manifestação de sua vizinhança de notáveis. A intenção era percorrer em buzinaço toda a extensa cercania. Deus ajuda quem cedo madruga — disse para si — e aos preguiçosos ajudo eu e quem comigo for.
Às sete e meia deu partida em seu porsche e dirigiu até a Praça Castello Branco, no centro. Aguardou lá até o horário marcado, sem que ninguém aparecesse e, então pontualmente, ainda parado, iniciou sozinho seu buzinaço. Após dois minutos, saiu devagar para cumprir sua promessa. Dirigiu distraído por cerca de um quilômetro até ouvir uma buzina pomposa se juntando à sua, e depois mais outras três. Assim, após cruzar cada quadra, mais e mais carros luxuosos e buzinas se uniram à manifestação. Eram tantos carros e motos que a baixíssima velocidade impedia o fluxo crescente da carreata.
O telefone de Cândido tocou; na ligação alguém sugeriu que ele, em posição de liderança, dirigisse mais rapidamente e fosse para a pista à direita: uma grande reta que se estendia por toda a extensão do condomínio e depois o circundava. Ótimo — ele disse. Sinalizou a conversão à direita e, em velocidade que considerou segura, estando já dirigindo pela reta, ficou a contemplar o crescimento, atrás de seu porsche, da fila de carros e motos importados e o barulho ensurdecedor que faziam. Cândido se maravilhou; é o caminho certo — disse, altivo, e cresceu seu sorriso roncando o motor qual discurso dotado de excessos. Cumpriu-se o esperado e a fila roncou seus motores em brados raivosos de apoio ao líder, preenchidos pelo ronco gutural das motocicletas.
Foi momento de comoção para Cândido que, na empolgação surgida do apoio recebido, enquanto já confabulava planos para o que sucederia, esqueceu que toda reta tem um fim e bateu contra o muro. Ele não se feriu com gravidade, mas foi tomado por grande emoção e, na tentativa de não arruinar o protesto, saiu às pressas do porsche e se pôs a caminhar em direção aos motoristas orientando que eles prosseguissem; tudo bem sim, tudo ótimo — disse — melhor impossível. A carreata, portanto, não parou, e dela não se sabe o fim, pois Cândido permaneceu ali, surdo e cego de agitação, não sentindo o filete de sangue escorrendo da testa e do nariz. Os motoristas e motociclistas que estavam mais próximo do acidente pensavam que havia em Cândido certa loucura. Os demais, mais atrás, tinham, em confusão, suas impressões sobre ele e se empenhavam ainda mais no buzinaço nutrindo ideia de agressão, de caracterização, enfim. Quanto ao porsche no muro, ninguém realmente deu importância, uns não compreendiam o acidente, outros nem viam.
Longe, a quilômetros de distância, uma empregada doméstica viu com tristeza, enquanto limpava o vidro de uma janela na cobertura, crescer e se tornar densa, subindo em direção ao céu, uma escura fumaça.
Sobre o autor
Renan Peres nasceu em Vitória em março de 1997 e atualmente vive entre Cariacica e Conceição do Castelo. É formado em Letras pela Faculdade Saberes em 2018. Escreve poemas e contos. Seu primeiro livro é a coletânea de poemas sintomas, publicado em setembro 2020 pela Editora Pedregulho.
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