"Há Níveis e Níveis de Pontapés"
Ele ameaçou dar uma bicicleta, levantando uma perna dobrou o joelho, quando o colega lhe passou a rasteira, levando fé na sua imaginação, que talvez nem ele levava.
Os dois estavam em sala de aula e pelo uniforme era de se imaginar jogarem no mesmo time. Por não ser o local adequado para a prática do esporte o colega quis arrumar a bagunça e fez ainda mais.
O Professor aproveitou a deixa e começou a falar sobre a crônica “Tudo Junto”, de Lima Barreto.
- É, professor, tamo junto!
- Tamo, Kauã.
- Vou falar sobre narrativa não linear.
- Muitas vezes quando vocês leem um texto e acham que ele não tem nexo porque fala de uma coisa e depois passa pra outra que parece completamente diferente é porque ele se utiliza de outros recursos narrativos, que têm a ver com o sonho, com a imaginação, com o imprevisto e com as coisas repentinas da vida, como a pressa, a impaciência, a vontade, o desejo. Como quando eu chego na sala esperando que os alunos vão sentar, prestar a atenção, tirar dúvidas, o que é o regular de se ter na escola, e me deparo com um aluno querendo dar uma bicicleta em plena sala de aula.
- hahaha
- É doido esse cara, professor, liga não!
- É a fominhagem, diz outro.
- Sei como é!, diz o professor.
- Achei que era Educação Física na primeira aula.
- É, hoje é segunda-feira (23/07).
- É mesmo, mas hoje a gente está voltando a uma terça-feira do mês 4 porque tivemos a vontade de aumentar o nosso salário corrigindo os trinta por cento de perdas da inflação ao longo dos anos que não foram corrigidos, dois ticktes alimentação pra quem tem duas cadeiras, pagamento de férias sobre 45 dias e melhorias das condições da escola, fazendo greve. Esse foi o imprevisto que tivemos que nos tirou da narrativa linear da escola (a das férias que teríamos agora), disse o professor.
- Por que então hoje na escola é um dia em que estamos em uma narrativa não linear?, questiona, após explicar com o exemplo ao vivo.
- Porque é uma terça-feira.
- Isso!
Voltando a falar sobre o futebol, o Lima Barreto em 1921 achava que o esporte era ruim para o povo e iria trazer prejuízos para a sociedade.
- O que vocês acham?
- Futebol é massa.
- É, disse outro.
Sim. Eu também gosto. Mas, ligando a narrativa linear da sala de aula com a narrativa não linear do futebol na sala de aula, o Lima Barreto há quase 100 anos atrás falou de uma coisa que hoje mesmo foi comprovada na sala de aula.
Leia só (escreve no quadro):
“(...) a fraqueza mental do estudante atual ao tal de football (...)
(...) Não há mais preocupações de coisas intelectuais; a preocupação atual, não só dos estudantes, como dos demais rapazes, é o tal jogo de pontapés.”
Na época em que foi escrita a crônica o futebol tinha acabado de sair de um contexto em que como uma invenção inglesa ainda era tido como um esporte europeu e por isso no Brasil era tido como de elite. Mas o povo então começava a praticar e gostar de futebol e os negros começavam a ser protagonistas.
Vamos fazer diferente do que o Lima Barreto projetava e dar um lugar de inteligência e destaque ao futebol na sala de aula ou não?
- Tá legal, professor.
- Vamos.
Vou passar então um exercício maneiro. Vai ser como jogar futebol. O nome dele é jogo interpretativo-morfossintático.
Como a Alice, do filme "Alice no País das Maravilhas", que também viveu uma narrativa não linear quando entrou na toca do coelho, vivendo histórias onde parecia se passar vários dias e ao sair da toca a mãe a procurava dizendo que ela se afastou faziam alguns minutos e já estava ficando preocupada, vocês agora vão entrar na toca da África como o Pantera Negra em Wakanda.
- Uh! (uma aluna espalma as mãos esfregando uma na outra num sobe e desce).
- Hihi (alguns riem).
Vários olham admirados.
Ah não, diz outro.
-Observe a escalação a seguir dos jogadores campeões da seleção francesa.
Eles estão em um quadro em 3D parecidos com pássaros. Ao aproximar o quadro do nariz e ir afastando devagar eles parecem correr ou voar como aves:
1) Presnel Kimpembe – Congo
2) Samuel Umtiti – Cameroon
3) Paul Pogba – Guinea
4) Kylian Mbappé – Cameroon
5) Ousmane Dembélé – Senegal
6) Corentin Tolisso – Togo
7) N´Golo Kanté – Mali
8)Blaise Matuidi – DR Congo
9) Steven Nzonzi – DR Congo
10) Steve Mandanda – DR Congo
11) Adil Rami – Morocco
12) Nabil Fekir – Algeria
13) Djibril Sidebé – Senegal
14) Benjamin Mendy – Senegal
- Nossa, que legal!
- Não vi nada, diz outra aluna.
- É só fazer devagar, fala o mestre.
- Agora vi!
Com esse exercício notamos que toda imagem objeta a realidade, ou seja, paralisa o movimento da vida criando um objeto cultural. Antes de ser imagem, por exemplo, essa mesa foi uma árvore, ela era nova, foi envelhecendo e aumentando as raízes. E depois de virar mesa vocês escreveram nela, usaram pra apoiar suas mãos e os cadernos, outros até subiram em cima criando um pódio. Assim é com o quadro que vocês vão observar para fazer o exercício. Há um antes e um depois dele que fazem parte do contexto para interpretá-lo.
Agora, de acordo com a lista da seleção francesa relacionada ao quadro seguinte faça o exercício:
Jogo interpretativo-morfossintático com o quadro “Futebol, 1935. Pintura a óleo/tela 97x130cm. Portinari”.
Nomeie cada número do esquema tático abaixo de acordo com o protagonismo de um personagem do quadro que ganhará o nome de um dos jogadores franceses acima. Os números representarão palavras de sua ação no contexto do país de origem. Ligue os números de modo que formem as jogadas de introdução (defesa), complicação ou conflito (avanço do meio para o ataque), clímax (armação da jogada) e desfecho (finalização a gol). Dê um nome para cada jogada de acordo com o sentido de cada frase. Ser o criador das frases vai ser como ser o técnico do seu time.
Esquema:
1
2 3 4 6
5
7 8 10 11
9
Palavras:
1- Mbappé
2- um
3- povo
4- proteção
5- terra
6- o
7- com
8- é
9- gesto
10- invisível
11- aplaudido
A aluna Tuany estava muito concentrada. Ela ria. Ela escrevia bonito.
Quando o professor foi olhar ela tinha criado o seguinte exercício:
Frase 1: O Mbappé com gesto invisível é aplaudido.
( 6 – 1 – 7 – 9 – 10 – 8 – 11)
Nome da jogada: Da raiz aos frutos.
(jogada de finalização)
Frase 2: O povo com proteção.
(6 – 3 – 7 – 4)
Nome da jogada: quarteirão afro-francês.
(jogada de armação)
Frase 3: É Terra com o povo.
( 8 – 5 – 7 – 6 – 3)
Nome da jogada: Entendendo as origens da imigração.
(jogada de defesa)
Frase 4: Um povo é aplaudido.
(2 – 3 - 8 – 11)
Nome da jogada: Tamo junto.
(jogada de armação).
Durante a leitura da jogadas da aluna foi possível vislumbrar outro Brasil, outra Europa, outra África. E ver os frutos da raiz africana saboreados depois da realização do gênio da lâmpada, se espalhando em letras dos cadernos, sem que se quebrassem os galhos que formavam uma bicicleta.
O professor pediu para ela ler em voz alta.
Após a leitura a lâmpada da sala apagou e nem a costumeira manha de apagar todas elas juntas para que acendecem não funcionou. O professor repetiu três vezes o gesto, a lâmpada continuou apagada.
Tudo não passou de alguns segundos em que ela viu o gesto de um colega sem noção e logo voltou à leitura encontrando uma lâmpada e fazendo três pedidos ao gênio.
O primeiro foi: - Que me dê inspiração para escrever um conto.
O segundo: -Que o professor seja meu aliado como protagonista da história.
O terceiro: - Que eu tenha o poder do Pantera Negra.
Sobre Wagner Silva
Wagner Silva Gomes é praticante e amante do olhar periférico da molecagem que enxerga as coisas poeticamente. É licenciado em Letras-Português pela UFES com o trabalho de conclusão “Objeto Palavra: um vagar entre matéria e pensamento na poesia de Casé Lontra Marques” e pós-graduado em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Faculdade Estácio de Sá com o trabalho de conclusão “A Condição Humana em Psicose”. É poeta, romancista, professor e educador social. Publicou o romance “Classe Média Baixa” (Editora Pedregulho, 2014), o romance “Nix: Microfone por Tubos de Ensaio” (Editora Pedregulho, 2018). Figura na décima edição da Revista Escala, nas coletâneas “Osso de Escrever” e “Sabadufes”, e em participações em saraus como o Poesia na Calçada e a Cachaçada Literária. Escreve frequentemente nas redes sociais poemas e magmas para possíveis assentamentos literários. Foi integrante do programa da rádio universitária Teatro dos Desoprimidos com o personagem Malcolm X.
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