"Biotipo"
Augusta escolheu seu nome por causa da rua, famosa por seus bares e sua vida noturna e o que as duas tinham mais em comum: a extravagância. Conseguiu se fixar em um bairro da Zona Oeste da capital. Investiu todas as suas economias na compra de um açougue e conseguiu, junto com a freguesia, uma quantidade razoável de amigos. Júlio era o mais chegado, com quem Augusta dividia todos os segredos. Augusta ficava quase o tempo todo no açougue. Não pegava em facas, dizia ter horror e, por isso, só gerenciava de perto tudo o que acontecia. Nas folgas, gostava de passar seu tempo ligando para nomes dos classificados dos jornais, bebendo uísque e ingerindo anfetamina. Trabalhava muito e era perfeccionista: quando queria algo, tinha que ser exatamente como prescrito. Petrônio era um garoto normal, quase imperceptível, não fosse a sua personalidade marcante e a sua ousadia em querer estar presente e opinar sobre todos os assuntos a sua volta. Ele se considerava insuperável. Ninguém da repartição era mais inteligente que ele. Suas opiniões eram certeiras. Sabia sempre de tudo. Não há o que fazer. O Petrô nem se mexe mais. Júlio não entendeu o porquê de Augusta ter matado Petrônio, mas também não quis saber. Só tinha sido chamado para ajudar a tomar providências a respeito do corpo do garoto e, como um bom e fiel amigo, foi. Porra, Augusta! O que a gente vai fazer? O cara é pequeno mas é um corpo. Corpo é difícil de esconder. Faço a mínima ideia. Olha, não quero que essa coisa venha pro meu lado depois não, hein. Se acontecer algo, põe a culpa no padeiro ou sei lá em quem. Eu não quero saber dessa merda puxando meu pé e nem me levando pra cadeia não. Fica tranquilo, não vai acontecer nada. Nosso relacionamento era segredo. E aí, Augusta? O que vamos fazer pra acabar com essa merda logo? Então, pensei em utilizar o cutelo. E você sabe? Claro que sei. Depois pego a carne boa para moer. Os miúdos coloco num saco plástico e você leva para algum lugar que tenha cachorro. Pode ser, inclusive, na casa do padeiro. Mas vai lá sem ele perceber. De madrugada ele nunca está lá. Às vezes, está até aqui. Ligo pra ele e, quando ele vier, você vai. Os ossos, podemos jogar os pedaços no cimento e você termina de construir aquela parede do açougue, porque, qualquer coisa, você diz que eu paguei pra você vir aqui me ajudar a bater a laje e a subir essa parede. A gente comprova o serviço com um recibo etc. Porra, Augusta. Eu tô é fodido com essa história de esconder corpo. E se alguém descobrir? Tô fodido. Vai por mim, não vai acontecer nada. Os dois esconderam Petrônio na parede do açougue de Augusta, que vendeu o moço anunciando uma promoção de carne moída de ótima qualidade. A cada osso instalado na parede, Augusta dizia alguma coisa, como um ritual para os pedaços se encontrarem e irem juntos para alguma luz. Certo dia, tomando uma cerveja com Júlio na padaria, Augusta ouviu numa das edições de um jornal local que um homem havia desaparecido e que a polícia estava com dificuldade de encontrar qualquer imagem para se chegar no suposto sequestrador. Augusta, o negócio é o seguinte: aquele dia lá você estava toda com saudade do cara, se queixando e tal. Mas você não toca mais no assunto e não fala mais nada sobre ele. Claro que não falo, eu nem o conhecia. Como assim? Vocês não tinham um relacionamento? Eu não. Porra, como não? Você tinha me dito que era confidencial. Não era. Eu precisava que você acreditasse mesmo e me ajudasse com aquilo. Eu não sabia o que fazer com aquele rapaz. Mas de onde ele veio? O que ele estava fazendo na sua casa? Então, eu achei o nome dele num jornal. Lá dizia que era alto e musculoso e eu liguei para saber. No telefone, ele riu. Disse que era piada dos amigos do trabalho, mas me cantou. Eu achei a voz dele bonita e falei com ele pra ir lá pra casa. Ele chegou lá em casa e eu não gostei muito do que vi. Mas sou uma pessoa receptiva, né. Ofereci um vinho e começamos a conversar. Ele falava demais, sabia demais e eu, naquela noite, só queria um homem alto e musculoso. E quieto. Podia ter deixado ele ir embora então. É, podia.
Sobre a autora
É formada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), editora, revisora e idealizadora da Editora Pedregulho. Autora de AmorS e outros contos (2014), Opala Negra (2014) e Lama (2019).
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