Aline Dias nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, é jornalista, escritora e blogueira. Publicou os livros Vermelho (Cousa, 2012) e Além das Pernas, (Pedregulho, 2015). No começo deste ano, ela foi a um bar do Centro de Vitória para batermos um papo sobre ela, sobre seus livros, sobre como ela enxerga a indústria de arte e essas coisas.
Sentamos com cervejas e pedimos batata. Resolvi começar com uma pergunta intensa e, com um pigarreio da originalidade que só os amadores têm, eu engato na pergunta a resposta adiantada que eu achava ela daria:
Como é o seu processo de criação? As histórias no além das pernas, por exemplo, elas falam da sua vida, das suas experiências, da sua identidade como mulher e como escritora?
Não exatamente, não é uma questão só de escrever autobiográfico, isso eu acho chato. Eu vejo duas vertentes: tanto ouço histórias e as conto, quanto conto algumas das minhas próprias histórias, sim. Ou talvez eu só invento alguma coisa que acho que seria interessante de explorar e até sonho eu uso. Tipo “Torresmo”, aquilo lá é mesmo uma enxurrada, um desabafo, é fluxo de pensamento.
Então eu peço que me dê uma frase para eu destacar na entrevista, num quadrinho isolado no meio do texto, e sem nem pestanejar ela disse “Eu sou da geração do entre e não bate, só eu que bato”, mas uns dias depois ela postou isso no Facebook e eu fiquei com receio de usar na entrevista. A resposta tão resoluta dela me intimida, mas estávamos só começando e decidi tentar manter o nível de intensidade.
Aline, o que você costuma pedir pra comer em boteco?
Batata frita, por consenso. Mas se vou no Cochicho, peço coxinha, ou kiéber no Abertura, no Gegê, o bolinho de carne. O que for bom, qualquer coisa, mas se for ruim, não como.
A entrevista está indo muito bem, posso sentir.
Com outra cerveja, levanto o além das pernas, e peço para me contar o que acha da recepção do livro novo, que agora tem um ano. Nem transcrevendo a entrevista, a propósito, eu conseguiria interromper o que acontece daqui pra frente. Ela respira, toma um gole longo e me responde, sem rir do próprio trocadilho,
que o livro tem pernas; esse livro está seguindo o seu caminho, é bonito de ver. Tem vezes que recebo comentários bem diferentes sobre ele. Por exemplo, algumas mulheres viram pra mim e “Aquele conto, Aline, eu juro que você escreveu pra mim!”, e não ouço isso só sobre um conto, não. Acabou que as pessoas vão se identificando bem pessoalmente com cada um, e acho que isso é fácil de ver, no formato do livro.
Aí isso muda com o comentário de vários caras que não entenderam a ideia do livro, eles vêm com um tratamento diferente, falam que o livro é esquisito, que “é misterioso esse livro, né?”, juro! E eu vejo isso como um produto do mercado que a gente faz parte, desde há muito tempo que a voz feminina é feita pra parecer menos ativa no mundo, por isso que quando aparece uma narrativa onde isso não acontece, causa esse “estranhamento” nos caras. Isso é uma sina mesmo, é encrustado na criação de personagens para o mercado de literatura. A JK Rowling mesmo, em Harry Potter, prefere usar protagonistas homens para mostrar situações de aventura, com as mulheres em papéis de assistentes pra eles. E no outro livro dela, o Morte Súbita, ela tem personagens mulheres que são muito melhor descritas. Essas personagens existem, mas é mais fácil simpatizar com o fato da Katniss gostar de cuidar de casa; com a mulher no A Mão e a Luva, do Machado, preferir o homem que é mais ambicioso, não o que é mais rico; mas quando na narrativa a mulher quer botar brasa no olho e não precisar de mais nada, daí é mais difícil de entender a personagem, aí a história fica misteriosa, fica estranha. Fica sendo uma questão de representação. As personagens dos homens costumam ter mais espaço para se explorar, para se desenvolver. Os homens são mais complexos na literatura. Há quanto tempo que pra mulher sobra as personagens-objeto? As personagens que se encaixam em algumas categorias bidimensionais, ela é o troféu, ela é a mãe, ela é a virgem, ela é a megera, ela é a porra da Eva cagando o Paraíso pra todo mundo! Principalmente, as mulheres escritas por homens, tipo a puta virginal do José de Alencar, onde ela ainda está a serviço do homem da história, sempre. O que é diferente de histórias com mulheres falando sobre mulheres, e sobre as questões delas, é a empatia, é o entender que no final das contas são só questões, é isso. É o buscar repertório de mulheres, não apenas literatura.
Respirou.
Passo o olho na equipe do livro e, ingênuo, pergunto se foi uma decisão política. Ela franze a testa ligeiramente e com graça diz que
sobre a produção do livro, eu escolhi as mulheres da equipe porque elas são competentes, ponto. Fora elas, o diagramador é o Gustavo Binda, porque é o Binda, né? É o meu companheiro. Ele trabalhou comigo no Vermelho também.
Achando uma brecha pela esquerda, pergunto sobre o Vermelho, como é a recepção desse livro pra você?
Ah, o Vermelho é uma coisa diferente, né? Primeiro, porque tem a reação sobre a personagem do Giordano. Ele é um protagonista que é contra a sociedade. Em momento nenhum - e ela enfatizou o nenhum algumas vezes - do livro ele toma nenhuma decisão. A epígrafe é o que realiza o livro. Em si, Vermelho é a história de um homem frustrado; um homem que se realiza sexualmente porque elas o escolhem, mas ele nem vê as mulheres como seres humanos.
Não foi uma coisa que eu pensei ativamente enquanto escrevia. Aquilo era uma história que eu tinha que contar; rolou. Na terceira página do livro eu já sabia que ele era um babaca. Ele aparece como esse cara medíocre que se acha brilhante demais pra conseguir fazer qualquer coisa, um cara que não tem ação nenhuma. Mas tinha gente que se identificava e eu achava assustador.
As mulheres no livro, nenhuma era babaca. Todas elas sabiam o que estavam fazendo e sabiam o que queriam, nem tanto só por serem mulheres, mas por serem pessoas que decidem as coisas sobre a própria vida e então as coisas aconteceram. E ele não, ele não executa. Ele procura uma mãe nas mulheres perto dele, que ele nunca vai achar, e então grita auto-sabotagem, se sente vítima do sistema, e passa o livro todo esperando as coisas virem perfeitas para ele. Já me perguntaram se teria uma continuação para o Vermelho, mas não consigo ver essa personagem de nenhum outro jeito; uma continuação seria mais dele fazendo as mesmas coisas até morrer.
Depois disso continuamos no bar, fechamos os cadernos, conversamos sobre outros livros, sobre os planos efetivos de instaurar a ditadura gayzista em Vitória e como seria um jeito bacana de terminar a entrevista de modo que garantisse que as pessoas fossem procurar os livros dela pelos sites das editoras.
Entrevista feita por João Chagas e originalmente publicada na Revista Trino. Acesse aqui: http://bit.ly/2XUtcvv
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