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Foto do escritorEditora Pedregulho

Conto inédito de Sérgio Rodrigo

Atualizado: 18 de out. de 2019

"Algoritmo não tem coração"


Eu te deletei da minha vida. Você foi um grandessíssimo babaca. Eu nem sei o porquê de eu estar apaixonado por você naquela época: você é egoísta, brigão e nada carinhoso. E nem trepava bem (isso quando trepava, né?). E quantos momentos especiais você estragou? Incontáveis! Sempre com sua necessidade de ter toda a atenção. Isso me magoava muito porque eram boas experiências nossas que viravam brigas terríveis com muita mágoa e choro. Você precisava sempre destruir tudo, você nunca nos possibilitou ser felizes, sempre querendo se mostrar livre, o que no seu caso é demonstrar como não se importa com o outro. No quarto me amava, na rua era um inimigo. Você é preguiçoso, não levantava para nada me pedindo para fazer tudo. É um chato, metido a esoterismos: explicava tudo por energias cósmicas, forças da natureza e não acreditava em psicanálise. Infantil! Imaturo! Sempre soltando seus comentários sarcásticos por entre os dentes sobre aquilo que mais me doía. Meu Deus, quanto tempo eu perdi com você? Quantas vezes eu tive que mandar você se foder? E você ria no seu sadismo, me fazia sofrer e ria. Dizia o que sentia e depois desdizia. E eu o odiava e me odiava mais ainda por permitir que você fizesse isso comigo. Como eu consegui ficar com alguém que fazia eu me odiar? E você se recusava a se desculpar, lembra? Passávamos horas desenhando exatamente como estava nossa relação precisamente porque era terrível o que você tinha feito comigo e, ao final, reconhecendo seu erro você dizia: “eu peço perdão se me pedir primeiro”. ESCROTO! Que grande perda de tempo você foi.


Está bem. É difícil lembrar de momentos bons quando certas relações terminam. Eu nem teria tentado se não houvesse nada, nadinha de bom. Tiveram momentos bons sim, admito. Teve quando te conheci, você bem bêbado com cara de “onde eu vim parar dessa vez?” e eu do lado de fora do bar conversando com uma amiga já de saco cheio da música que rolava dentro do bar, a gente se olhou e se iluminou. E você se aproximou de mim e na primeira frase já me fez me apaixonar pelo seu sotaque nordestino, seus Ts estalando entre os dentes. E você dizendo que nós éramos iguais e dizendo que sua mãe ia gostar de mim porque eu parecia com você. Tinha seus sorrisos toda as manhãs muito cedo batendo a minha porta e me trazendo algo para comer. Tinha as horas intermináveis ouvindo Maria Bethânia e você dublando para mim as canções. Tinha seus pés descalços me tirando para dançar no bar e depois esses mesmos pés imundos sujando meus lençóis. Tinha seus dedos passeando pelas minhas costas e me fazendo me arrepiar. Tinha você me agarrando e me levantando no mar, na praia lotada, mergulhando e me beijando nas águas mornas da Bahia. Sim, também fomos felizes. Na verdade nunca soube porque brigávamos ou porque terminamos. Você sabe? Talvez eu não tenha dado conta do que você tenha chamado de amor livre. Se há um grande ódio, é porque houve um grande sentimento outro antes que na sua ausência é preenchido com lama podre, lixo e chorume.


Os algoritmos não tem coração. Sabendo de meu interesse e de nossa ligação sempre mostravam seus conteúdos primeiro, antes de tudo. Me machucava te ver no Instagram bebendo com seus amigos e sorrindo. Seguindo a vida sem mim, me apagando, me transformando em um fato corriqueiro, sem valor e sem nota. Me magoou a foto linda que tinha tirado de mim ter sido excluída da sua conta. Me feriu de morte ver que você fez sem mim a viagem que tínhamos planejado juntos, sem constrangimento, e amplamente registrada em suas redes sociais. Me amargou os comentários insinuantes de tantos homens em suas postagens. E todos aqueles rapazes em suas fotos, quanto deles imaginei fazendo nossas coisas, aquilo que nos era especial? E mesmo que eu tentasse desviar os olhos, uma atração masoquista me arrastava para seus posts: eu via a foto; depois lia o texto; e depois lia os comentários; e depois ainda clicava e checava o perfil de alguns dos comentadores; e depois me sentia péssimo por isso, pequeno e humilhado. A gente vê essas páginas das redes sociais e elas parecem tão assépticas, mas há muita dor, mágoa, inveja e ciúme naqueles zeros e uns. Por isso eu deixei de te seguir em tudo: te excluí do Instagram, desmarquei seu conteúdo no Facebook, apaguei nossas conversas no Whatsapp e Messenger. Te desindexei da minha vida. Isso me serviu de algum alento, teve alguma função terapêutica. E depois fui curtir outros homens e outros conteúdos, e o algoritmo que tem sua própria lógica da paixão aos poucos foi me conduzindo a outros caminhos.


Hoje apareceu um conteúdo seu por conta de um amigo que temos em comum. Uma foto sua numa festa. Você estava feliz, lindo, um pouco mais magro. Eu olhei e sorri. Fui tomado por sentimentos bons de saudade, como quem lembra de uma outra vida passada. Quantas vidas cabe numa mesma vida?


Decidi escrever para dizer que acabei de voltar a te seguir.


Está perdoado.


Sobre Sérgio Rodrigo



É professor, pesquisador, jornalista, escritor e artista gráfico. Em 2016, lançou seu livro de estreia, “A Boa Bicha”, pela editora Pedregulho. Alguns de seus trabalhos foram publicados em coletâneas, revistas e fanzines.  Foi premiado no concurso de contos eróticos da editora Huapaya (2008).  Criador e autor do blog Babado Certo. É doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia e produz a partir das questões do gênero e da sexualidade. 

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